terça-feira, 23 de julho de 2013

A língua não é uma coisa, é motraive


Introdução
Certa feita iniciei uma palestra sobre ecolinguística com a seguinte pergunta: “A língua é uma coisa?” As pessoas do auditório ficaram espantadas, certamente pensando como é que alguém poderia fazer uma pergunta dessas. Quando eu disse que toda concepção de língua que a considere um meio ou instrumento de comunicação, ou de expressão do pensamento a reifica, a estupefação continuou. Só começaram a não achar minha pergunta inteiramente absurda quando lembrei que “instrumento” é uma coisa que se usa para fazer algo. Se a língua é um instrumento de comunicação ou de expressão do pensamento, ela é uma coisa, que uso para comunicar ou expressar meus pensamentos. Todas as versões do estruturalismo estão nesse caso, sobretudo o gerativismo. É uma concepção de língua que não avançou muito desde Schleicher no século XIX, embora em outros sentidos as ideias desse autor tenham representado um grande progresso nos estudos da linguagem. O mesmo se pode dizer dos estruturalismos, que trouxeram esses estudos para o estágio de conhecimento científico da mecânica clássica.
Com o advento da nova visão de mundo desvelada pela teoria da relatividade e pela mecânica quântica por volta da segunda década do século passado, as coisas começaram a mudar, embora não de modo imediato na linguística. O mundo não era mais visto como uma coisa, localizada no espaço, composta de partes menores. Como diz Capra (2002: 231), “enquanto que na física clássica, as propriedades e o comportamento das partes determinam as propriedades e o comportamento do todo, na física quântica a situação é a inversa: o todo é que determina o comportamento das partes”. Aplicando isso à linguagem, veremos que o todo é a interação comunicativa, localizada na respectiva ecologia da interação comunicativa (EIC). Há “uma mudança do pensamento em termos de estrutura para o pensamento em termos de processo” (p. 244), confirmando mais uma vez a prioridade da interação comunicativa sobre o sistema. Nesse caso, “o universo material é visto como uma teia dinâmica de eventos inter-relacionados. Nenhuma das propriedades de qualquer parte dessa teia é fundamental; todas resultam das propriedades das outras partes, e a consistência global de suas inter-relações determina a estrutura de toda a teia” (p. 247). Enfim, falando da difícil questão ‘onda’ ou ‘partícula’, Capra acrescenta que “nem a linguagem nem a imaginação estavam suficientemente capacitadas para lidar com esse tipo de fenômeno” (p. 44).
Essa nova visão de mundo de certo modo foi reforçada com a entrada em cena da ciência da ecologia, para a qual o que interessa não são os organismos em si que vivem em determinado território nem o próprio território em si, mas as inter-relações entre eles no interior de um ecossistema, delimitado pelo investigador, mas visto como um todo. Logo a seguir, algumas ciências humanas começaram a aplicar essa visão de mundo no estudo de seu objeto, como é o caso da geografia (na verdade, isso já começara com Ratzel no final do século XIX), da antropologia, da sociologia e da psicologia, entre outras. Em 1911, Sapir deu o primeiro sinal de que esses princípios poderiam ser aplicados ao estudo da linguagem também (ver Sapir 1969), mas, foi só no início da década de setenta que Einar Haugen deu o pontapé inicial para uma abordagem ecológica da língua (Haugen, 1972).

Ecolinguística: uma nova maneira de encarar a linguagem
Como reação à rigidez da “língua” do estruturalismo, começaram a surgir concepções mais “interacionistas”. O grande problema com muitas delas é que, também elas, consideram a língua como um instrumento de interação, de comunicação e, como já vimos, isso implica sua reificação. No início da década de noventa, Fill (1993) e Makkai (1993) pegaram a bola de Haugen e começaram o jogo da ecolinguística. Só que, mesmo vendo na língua algo dinâmico e aberto, embora sistêmico, a ecolinguística por eles proposta começou a usar conceitos ecológicos como meras metáforas, como muito bem observou Garner (2004). Pelo menos de modo explícito, foi só em Couto (2007) que se começou a ver a língua não mais como um instrumento de comunicação ou expressão de pensamento que pode ser estudado importando metaforicamente conceitos da ecologia. Começou-se a vê-la como uma imensa teia ou rede de interações que se dão no interior do ecossistema linguístico. Melhor dizendo, começou-se a vê-la como um processo, não uma estrutura. A nova visão pôs em prática sugestões de Finke (1996), Trampe (1990) e Garner (2004), entre outros, no sentido de ver a língua como um conjunto de interações verbais que se dão no interior do ecossistema linguístico.
Não se transportam mais conceitos da ecologia para a linguística metaforicamente. Com o reforço de novas investigações contidas em Couto (2013), a ideia de língua como rede ou teia de interações, como processo, ficou relativamente bem estabelecida. Nascia a linguística ecossistêmica, de discussões do presente autor com seus colegas de pesquisa (Elza Kioko do Couto, Gilberto P. de Araújo, Davi B. de Albuquerque), no seio do que veio a ser chamado de Escola Ecolinguística de Brasília. A partir daí, constatamos que não usamos conceitos ecológicos como metáforas. Nós praticamos ecologia, no caso, ecologia linguística, outro nome para ecolinguística, e a ecologia linguística que praticamos é precisamente a linguística ecossistêmica, pelo fato de nosso conceito central ser o de ecossistema linguístico, do mesmo modo que o conceito central da ecologia biológica é o de ecossistema biológico. Este último é formado pelas inter-relações (interações) que se dão entre organismos e respectivo meio ou território, bem como as que se dão entre os próprios organismos. No caso da linguística ecossistêmica, o primeiro tipo de relação (interação) constitui a designação de aspectos do mundo, também conhecida como referência, denotação, significação, entre outros nomes, dependendo da perspectiva. O segundo tipo, as relações (interações) entre quaisquer dois organismos ou, no caso, pessoas, constitui a comunicação que, linguístico-ecossistemicamente é chamada de interação comunicativa. Para essa versão da ecolinguística, o último tipo de interação é central, pois ele engloba o primeiro. Nós comunicamos referindo-nos a algo, o que implica que a referência existe em função da comunicação.
A nova concepção de língua na verdade nem é tão nova assim, mas é de difícil aceitação. Ela implica uma mudança de postura, que Capra (2002: 244) chamou de novo paradigma, o paradigma ecológico. A linguística ecossistêmica é justamente uma tentativa de se olhar para os fenômenos da linguagem de acordo com essa nova visão de mundo. Ela exige uma mudança em nossas crenças linguísticas. Mas, como disse Einstein, embora isso não esteja comprovado, é mais fácil cindir o átomo do que mudar as crenças de uma pessoa. É aproximadamente como mudar de religião, como do cristianismo para o islamismo. Isso implicaria uma drástica alteração da postura frente ao mundo, sobretudo no que se refere às relações entre homem e mulher. É também como mudar de língua, ter que se comunicar em uma outra língua depois da idade adulta. O falante teria que encarar o mundo, e falar dele, pelo modo como os membros da nova comunidade o fazem. Por fim, seria como se inserir em uma nova cultura, o que implica os dois casos anteriores. Cada cultura se relaciona com o mundo de modo diferente. Às vezes é difícil aceitar determinados costumes de certas tribos indígenas, como o infanticídio, sobretudo por parte dos citadinos. Enfim, praticar ecolinguística é não apenas postar-se na cumeeira da casa, mas também trocar de binóculos para olhar seu entorno e de câmera para registrar o que se observa. Essa câmera deve estar provida de fortes dispositivos de zoom a fim de se fazer registros não apenas macroscópicos, mas também microcoscópicos.
 
Linguística Ecossistêmica: a língua como interação no ecossistema linguístico
A linguística ecossistêmica representa um nova maneira de olhar para os fenômenos da linguagem. Para as pessoas em geral é extremamente difícil, às vezes impossível, saírem da comodidade de olhar para o mundo como sempre fizeram e como sempre se fez. A tradição da gramática normativa e a própria tradição da ciência linguística têm deixado pré-conceitos dos quais têm muita dificuldade de se desfazerem. A primeira impingiu em nós na escola a ideia estapafúrdia de que o essencial na língua é a escrita, juntamente com todo o sistema normativo que está por traz dela, com o que deixa implícito que a fala seria um derivado empobrecido dela. Por mais que alguns linguistas achem isso absurdo nos dias de hoje, ainda podemos ver essa ideologia sendo manifestada aqui e ali com relativa frequência. A segunda, a linguística moderna, pelo menos em sua maior parte tem dito que a linguagem é um instrumento de comunicação, com o que a reifica. Como salientado em Couto & Couto (2013), a língua não é instrumento de expressão do pensamento nem instrumento de comunicação. Ela é a própria comunicação.  
A dificuldade de aceitar a nova concepção de linguagem se explica por outros motivos. Como disse Fritjof Capra, "as teorias quântica e da relatividade, os dois pilares da Física moderna, tornaram claro o fato de que essa realidade transcende a lógica clássica e de que não podemos falar a respeito dela usando a linguagem cotidiana" (Capra 2002: 42). A propósito da "teoria quântica" Heisenberg afirmou: "aqui não nos deparamos de início com qualquer guia simples que nos permita correlacionar os símbolos matemáticos com os conceitos da linguagem usual; e a única coisa que sabemos desde o início é o fato de que nossos conceitos comuns não podem ser aplicados à estrutura dos átomos" (Heisenberg, apud Capra 2002: 42). Como a linguagem natural não dispunha de recursos para isso, usou-se a linguagem matemática, que, segundo Galileo é a linguagem da natureza. O físico Davi Bohm (2001) foi mais longe, sugerindo uma mudança na estrutura da linguagem natural, da ênfase nos nomes (substantivos) para ênfase nos verbos o que ele chamou de reomodo (grego: rheo = fluir). Tudo isso para evitar ver-se o mundo como uma coisa, composta de coisas menores, mas como processo.
Em vez de estrutura, fala-se agora em redes e processos. A rede não tem um ponto central, do qual os outros são dependentes. Até o surgimento da nova visão, o “bom” português era o de Portugal, sendo o do Brasil e dos demais países considerado como uma variação (para pior) dele. Assim, o centro do “bom” português seria Lisboa, cuja linguagem deveria ser seguida por todas as demais regiões lusófonas do mundo. Com a nova visão, Lisboa (ou Portugal) como um todo deixa de ser o “centro” do português, e as demais regiões (Rio de Janeiro, Luanda, Maputo etc.) a periferia. Cada uma delas pode ser encarada, momentaneamente, como centro pelo investigador para suas finalidades específicas. Trata-se do pluricentrismo, contrariamente ao monocentrismo anterior (Clyne 1992, Stork 2007, Amorós 2012, Batoréo & Casadinho 2009). No entanto, como ficou claro de discussões que mantive com Gilberto Paulino de Araújo, pluricentrismo também implica ‘centro’, de modo que o mais consentâneo com a visão de redes e processos em vez de estruturas é acentrismo, ausência de centros. Com isso, o investigador pode considerar qualquer ponto da rede como o ‘centro’ hic et nunc. Morin (2007: 27) disse que “o ecossistema se autoproduz, autorregula e auto-organiza de modo tão mais notável que não dispõe de um centro de controle, de nenhuma cabeça reguladora, de nenhum programa genético. Seu processo de autorregulação integra a morte na vida e a vida na morte”. Na linguagem, essa visão vale não só para o domínio total da comunidade de língua (caso do português: Timor Leste, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Moçambique, Angola, Brasil, Portugal), mas para o interior de cada país também, isto é, para o dialetalismo. Qualquer lugarejo, por menor que seja, pode ser considerado pelo observador, momentaneamente, o ‘centro’ da comunidade linguística portuguesa. Voltarei ao assunto abaixo.
Repitamos, para a linguística ecossistêmica o núcleo da língua é constituído pelos atos de interação comunicativa (AIC), que se dão no interior da ecologia da interação comunicativa (EIC). Como AIC e EIC têm sido estudados em diversas outras publicações (cf. Couto 2013a, Couto 2013b, Couto; Couto 2013, entre outras), não vou desenvolvê-los aqui. Gostaria apenas de lembrar que a EIC compreende a) um cenário, b) um falante, c) um ouvinte, d) circunstantes (o/os que está/ão com falante e o/os que está/ão com ouvinte). Nesse cenário, falante e ouvinte fazem uso de (e) regras interacionais e (f) regras sistêmicas, sendo que as segundas estão incluídas nas primeiras, são suas auxiliares na interação comunicativa, como está discutido sucintamente em Couto; Couto (2013). Para aqueles que talvez achem estranho considerar as regras sistêmicas (gramática) como auxiliares das regras interacionais, gostaria de lembrar o que vem dizendo Eugenio Coseriu há muitos anos. De acordo com ele, e interpretando“hablar” como interação comunicativa e “lengua” como regras sistêmicas, "mientras que la lengua se halla toda contenida en hablar, el hablar no se halla todo contenido en la lengua" (Coseriu, 1967: 287). Em suma, tudo na língua existe em função da interação comunicativa, como já salientara Roman Jakobson.

Motraive
Se dizer que língua é instrumento de comunicação é reificá-la, então, como podemos defini-la? De novo, podemos nos valer de achados da física moderna. Como se chegou à conclusão de que a própria matéria é uma forma de energia, chegou-se também a uma fórmula matemática extremamente simples. Em Capra (2002: 155), se pode ler que "a quantidade de energia contida, por exemplo, numa partícula é igual à massa da partícula, m, multiplicada por c2, o quadrado da velocidade da luz". Assim, temos a fórmula:
E = mc2
Em psicologia Kurt Lewin propôs a equação B = f (P, E), ou seja, "behavior" é uma função (f) da pessoa (P) em seu "environment" (E). Traduzido ecolinguisticamete, teríamos L = f (P, M): linguagem é função (f) das pessoas (P) em seu meio (M). Como em ciências humanas não é tão fácil lidar com fórmulas matemáticas, podemos nos valer do recurso da sigla, da acronímia. Nesse caso, do ponto de vista da linguística ecossistêmica, poderíamos dizer que a fórmula para língua é:

L=MOTRAIVE

Trata-se de um recurso aparentemente estranho, de difícil aceitação pelo status quo linguístico e até pelo leigo. De qualquer forma, ele é melhor do que dizer que “língua é instrumento de comunicação”, ou “língua é instrumento de expressão do pensamento”, transformando-a em uma coisa. Se linguagem é interação, comunicação, então a definição de que 'língua é o modo tradicional de os membros de uma comunidade interagir verbalmente' (motraive), se mostra surpreendentemente simples. Exatamente como a fórmula física da energia. Trata-se de uma palavra de apenas três sílabas. Como já salientaram diversos cientistas, inclusive o linguista Noam Chomsky, as questões fundamentais são simples. A aparentemente estranha sigla, que pode ser lida como uma palavra, revela, em sua singeleza, que língua é o modo habitual pelo qual os membros da comunidade interagem entre si por meio de palavras. Essa é a visão global, abrangente e holística da língua, uma vez que açambarca tudo na linguagem, inclusive o sistema. O único senão seria a sílaba complexa /trai/. Mas, isso é de somenos importância, diante das diversas esparrelas em que podem cair aqueles que definem língua como instrumento para isso ou para aquilo.
A reificação da língua certamente se deve ainda ao nosso hábito de achar que toda palavra é o nome de alguma coisa, como disse já havia dito Parmênides (sec. V a.C.) e como disse Fernando Pessoa: “Saudades, só portugueses / Conseguem senti-las bem, / Porque têm essa palavra / Para dizer que as têm”. Com isso esquecemo-nos de que a palavra nasce para falarmos do mundo e que, só após formada ela se liberta dos referentes, podendo ser usada para nos comunicarmos também sobre o que ainda não existe e até do que nunca existirá (ficção). Do contrário, cairíamos na concepção bíblica de linguagem, como se pode ver no Gênesis. Primeiro, temos a situação em que o verbo se fez carne, num verbocriacionismo inaceitável linguístico-ecossistemicamente, embora não pelo construtivismo radical (Glasersfeld 1989, Maturana & Varela 2011). Quando constataram que a palavra ‘unicórnio’ não designava nada no mundo real, os norte-americanos implantaram um chifre no meio da testa de um tipo de cervo para “criar” um referente para a palavra. Aqui vem à tona a pergunta inglesa “What is in a name?”. Nesse contexto, a palavra ‘língua’ deve designar alguma coisa do mundo. Com isso, esquecemo-nos de que as palavras podem designar não só coisas (substantivos), mas também ações (verbos), qualidades (adjetivos), modos (advérbios), relações entre coisas (preposições) e entre orações (conjunções). Vale dizer, mesmo no contexto das categorias aristotélicas se pode ver que a palavra língua não precisa necessariamente designar uma coisa. Ela pode designar relações, ou melhor, interações, que é precisamente o que acontece de acordo com a linguística ecossistêmica.

Hábitos e regras
Em sociologia (Durkheim 1972) e em linguística, como nas primeiras fases da gramática gerativa, se fala muito em regras. Para muitos sociólogos posteriores, essas regras seriam processos sociais que derivariam de processos sociais, não haveria nada de natural nelas. No entanto, Finke (1996: 40) tem argumentado no sentido de que “elas nasceram de leis da natureza”. Isso vale ainda mais para muitas das regras interacionais, como as seguintes: (a) falante e ouvinte têm que ficar próximos um do outro, aproximadamente um metro; (b) falante e ouvinte têm que ficar de frente um para o outro. Se estiverem muito longe um do outro, o ouvinte pode não ouvir o que o falante lhe diz; se ficarem próximos demais, pode parecer que o falante está invadindo o “território” do ouvinte. Se, por outro lado, não ficarem de frente um para o outro, pode haver mal-entendidos, além da regra (hábito) social de que falar de costas para o interlocutor soa como indelicadeza. Para Finke até as regras morfossintáticas e fonológicas têm a ver com relações da natureza. Vale dizer, de acordo com esse pensador é necessário deixarmos de lado o antropocentrismo e ver que somos parte da natureza, na qual nascemos e da qual fazemos parte. A língua também tem a mesma origem, quando não porque formada por nós humanos: a língua (L) está na população (P), que está no território (T). Já vimos que tanto a comunicação como a referência fazem parte do ecossistema linguístico, e tem equivalente no ecossistema biológico. É bem provável que, geneticamente tanto referência quanto comunicação comecem de modo natural, mediante interações concretas, hic et nunc, de cada indivíduo da comunidade com o mundo (sensação). Com a repetição dessas interações, os aspectos do mundo com que entra em interação perceptiva começam a se solidificar no indivíduo, passando a ter um certo caráter mental, a fazer parte de seu conhecimento (identificação). A continuidade desse processo e, sobretudo, seu compartilhamento leva as experiências assim obtidas a terem um caráter social.
No caso específico da nossa linguagem, “durante muitos anos, existiu em nossa cultura um dogma de que a linguagem era absoluta e exclusivamente um privilégio humano, a anos-luz de distância da capacidade de outros animais. Em tempos mais recentes, essa ideia começou a abrandar-se de um modo notável” (Maturana & Varela, 2011: 234). Assim sendo, as regras de nossa língua (interacionais e sistêmicas) são pura e simplesmente resultados de “interações recorrentes” (p. 200).
A sequência ‘percepção’ de determinado aspecto do mundo (sensação), sua ‘identificação’ e ‘compartilhamento’ desse conhecimento (socialização) leva à necessidade de uma palavra que se refira a ele, que é o momento da ‘lexicalização’. Só assim será possível falar com os demais membros do grupo (comunicar-se) sobre o fenômeno em questão. Tudo isso passa a fazer parte dos hábitos e costumes da comunidade. Trata-se de hábitos mentais (alguns deles individuais), que podem tornar-se sociais. São esses hábitos sociais que têm sido chamados de regras. As regras interacionais são modos comunitários habituais de interagir nos atos de interação comunicativa. Como essas regras incluem as “regras sistêmicas”, também as últimas resultam desses hábitos (Couto, 2007: 128).

Comunidade de fala, rede e processos
Por ser motraive, o locus em que se pode apreender a língua da maneira mais abrangente possível é a ecologia da interação comunicativa (EIC). É aí que se dão as interações comunicativas, que são os diálogos, ou fluxos interlocucionais. Como já vimos, eles geralmente obedecem tantos às regras (hábitos) interacionais quanto às sistêmicas, o que já dá a entender que se trata de uma visão holística da língua. Retomando a questão “centro” versus “periferia”, sobre a qual a tese do pluricentrismo representou um avanço, temos que ir para o acentrismo. Como na visão holográfica (Bohm 2001), cada ponto em que detenhamos nossa atenção pode ser considerado como o “centro” da realidade em questão. O que é mais, esse “ponto” tem em potencial todas as propriedades essenciais do todo, implica todos os demais, ainda nas palavras de David Bohm.
Pensemos na comunidade de fala de Major Porto (ex-Capelinha do Chumbo), no município de Patos de Minas (MG), estudada por mim (Couto 1974). Essa comunidade de fala (CF) rural de cerca de três mil habitantes interage com todas as demais CF da língua portuguesa, imediata ou mediatamente. Ela sofre influência delas e as influencia. Isso porque ela tem, ou implica, todas as propriedades essenciais da língua portuguesa, entre elas as propriedades nucleares de população (P), linguagem (L) e território (T), que constituem o ecossistema fundamental da língua, no interior do qual se formam ecologias de interação comunicativa, com seu cenário, participantes, regras interacionais e regras sistêmicas.
Mesmo diante de tudo que foi dito, alguém poderia argumentar que a rede teria um “centro” e uma “periferia”, como a rede de pescar, a de uma grade, de uma peneira etc. Para evitar isso, imaginemos nossa rede com forma esférica. Nesse caso, qualquer ponto em que nos fixarmos estará em relação com todos os demais, direta ou indiretamente, imediata ou mediatamente. Além disso, é importante ter em mente que essa rede esférica é dinâmica, é um processo, não está fechada de modo estanque, mas aberta, recebendo influências do exterior e influenciando-o. Como no caso dos corpos celestes, todos esferoides e influenciando-se mutuamente, por atração e repulsão. Veja-se o caso das interações entre estrelas e planetas, bem como entre planetas e satélites e assim por diante, estudadas pelos físicos e pelos astrônomos. No caso da CF de Major Porto, ela é uma rede de interações, que faz parte da rede de interações que é a língua portuguesa, influenciando-a e sofrendo influências dela.

Janelas e cumeeira
Dizer que a linguística ecossistêmica, e todas as ciências que lhe servem de base procuram encarar seu objeto de modo holístico soa um tanto vago. É preciso matizar essa asserção. Pegando carona com o sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, que argumentava em termos marxistas, poderíamos usar a metáfora das janelas e da cumeeira da casa. Dessa perspectiva, modelos teóricos parcelares como a gramática gerativa, a sociolinguística, a psicolinguística, o funcionalismo e a análise do discurso, para mencionar uns poucos exemplos, são janelas. Cada uma delas nos mostra um diminuto aspecto do objeto da linguagem. O marxismo, em sua interpretação, ofereceria a vista que se tem da cumeeira da casa (Löwy 1985: 81). Trata-se de uma visão panorâmica, que desvela tudo que se encontra ao redor. Transposto isso para a linguagem, a janela do gerativismo nos mostraria apenas as regras sistêmicas que, como já vimos, são apenas um dos componentes da ecologia da interação comunicativa, e não o mais importante. Essa janela nos mostraria da linguagem apenas as regras sistêmicas canônicas, e algumas de suas transformações, na morfossintaxe e na fonologia, provavelmente também alguns aspectos da semântica. Só isso. O funcionalismo mostraria isso e como funciona na interação comunicativa. Ora, isso é muito pouco.
Para ter uma visão não fragmentada, abrangente, holística dos fenômenos da linguagem, temos que ir para a cumeeira da casa, de onde teremos a visão ecossistêmica. O problema é que daí não é possível estudarem-se detalhes, como a nasalidade vocálica em português ou as sentenças clivadas, por exemplo. Mas, isso não é nenhum problema. Para fazer esse tipo de análise o ecolinguista recruta os préstimos de um sintaticista, ou de um fonólogo, que lhe fornecerá os resultados desejados. Outra alternativa seria o próprio ecolinguista fazer a análise específica, se domina, como é desejável, uma especialidade como as acima mencionadas. De posse do resultado, ele retorna à cumeeira e o analisa no contexto abrangente que daí se descortina. Em outro lugar eu já comparei isso a um tipo de zoom, o que Garner (2004) também fez. Como salientou Capra (2002), as disciplinas parcelares estão no nível da física clássica, enquanto que a ecolinguística está no nível da teoria da relatividade e da mecânica quântica, bem como da ecologia. Para o estudo de fenômenos da vida quotidiana, a mecânica clássica é perfeita. No entanto, para o infinitamente pequeno, nível subatômico, e o infinitamente grande, nível cósmico, ela é insuficiente. Ela só pode ajudar em casos específicos, isolados, que devem ser integrados na visão de conjunto.  
Como se vê, a linguística ecossistêmica e a ecolinguística em geral são multimetodológicas. Elas podem usar o método do modelo teórico que serve para analisar determinados detalhes do objeto de estudo no momento que for preciso fazê-lo. Só que, obtido o resultado, o analista retorna à postura abrangente a fim de analisá-lo ecologicamente. Aliás, as demais ciências sociais de orientação ecológica fazem o mesmo. Veja-se, por exemplo, a psicologia ambiental (Günther & Rozestraten 2005).

Observações finais
Mal comparando, a estranheza perante a asserção de que ‘língua é motraive’ é semelhante à estranheza perante os achados da teoria da relatividade e da mecânica quântica. As duas resultam de uma nova visão de mundo, que exige que o encaremos de outro lugar, ou de mais de um lugar, a partir do qual vemos apenas aspectos minúsculos dele, para usar um termo do filósofo espanhol José Ortega y Gasset. A linguagem comum não tem termos e, no caso da teoria da relatividade e da mecânica quântica, expressões capazes de captar a nova realidade descoberta. Por isso o recurso à linguagem da natureza, a matemática. No caso da linguagem isso não é possível; a aparente matematização da gramática gerativa capta apenas parte de uma das menores facetas da língua, que são as regras sistêmicas. Por isso, se quisermos ver a língua como os físicos modernos e os ecólogos veem o mundo, só nos resta dizer que língua é o modo tradicional de interagir verbalmente. Tudo nela emerge e imerge aí. Diante de tudo isso, podemos dizer que língua é motraive. Depois, é só procurar o que está por trás dessa fórmula sob a aparência de uma palavra simples.
Uma observação final cabe bem aqui. Os estudos de fonologia feitos no contexto do estruturalismo procuravam palavras para formar pares mínimos a fim de comprovar a existência de fonemas apenas no dialeto estatal. Seria um anátema se alguém dissesse que temos o fonema /y/ em português porque ele ocorre em muié (mulher), trabaio (trabalho) e veio (velho). Tampouco seria tido como de bom tom dar termos como amá (amar), vendê (vender) e partí (partir) como exemplos de palavras oxítonas portuguesas terminadas em a, e e i. Usar palavras como carça (calça) e praca (placa) para exemplificar usos do fonema /r/ seria considerado uma aberração. Do ponto de vista da linguística ecossistêmica, a pergunta que se pode fazer nesse caso é: se essas palavras não estão incluídas no âmbito da língua portuguesa, a qual língua elas pertencem? Não seriam formas de língua nenhuma? Mas, a realidade está aí na nossa cara, mostrando-nos que elas ocorrem em grande quantidade no Brasil, país que se diz falante de língua portuguesa de ponta a ponta, o que incluiria as regiões rurais.

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