A
COMUNICAÇÃO COM OS/DOS SURDOCEGOS E COMO A LINGUAGEM EMERGE DO MUNDO
Hildo
Honório do Couto
Universidade
de Brasília
1. Introdução
Este ensaio trata
de duas importantes questões nos estudos da linguagem. A primeira é o difícil
processo de se comunicar para os surdocegos. É muito diferente do que acontece
na comunicação dos/com os surdos, para o que existe há muito tempo as línguas
de sinais, no Brasil a Libras. No caso dos cegos, por disporem da audição,
podem aprender perfeitamente a língua oral. Para a escrita, eles dispõem da
grafia braile, mediante a qual podem escrever e ler textos sobre todo e
qualquer assunto.
Surdocego não
dispõe de nenhum dos dois sentidos mais apropriados para a linguagem, ou seja,
em primeiro lugar a audição e, em segundo, a visão. Como o olfato e o paladar
são inapropriados para a interação comunicativa, só lhes resta o tato. Ora,
esse sentido só permite um contato imediato com o entorno, com o mundo. Por
isso, os cuidadores de surdocegos precisam lançar mão de diversos meios para
conseguirem se comunicar com eles. Uma das estratégias é levá-los a ter contato
com a coisa e depois tentar criar algum sinal tátil para representá-la.
A despeito das
enormes dificuldades de se ensinar algum modo de se comunicar aos surdocegos,
há casos na história de alguns deles que chegaram a se expressar muito bem,
inclusive tornando-se palestrantes. Afinal, eles não são desprovidos da
capacidade de vocalização. O grande problema é conseguir associar sinais às
coisas que eles representam no ecossistema linguístico, que se desdobra em
comunidade de língua e comunidade de fala.
2. A relação entre
linguagem e mundo
"A linguagem
cria o mundo". É mais ou menos isso que apregoa o construcionismo
linguístico, que eu tenho chamado de verbocriacionismo. Trata-se de uma posição
mais teológica do que linguística ou ecológica. Tanto que ela está exposta bem
no começo do livro Gênesis, da Bíblia, onde se vê que o início da
linguagem se deu por fiat. Lá está dito que após criar o "céu"
e a "terra, Deus viu que ela estava nas trevas, por isso, dixitque Deus
fiat lux et facta est lux (1,3), ou seja, "Deus disse faça-se a luz e
a luz foi feita", chamando a luz "dia" e as trevas
"noite". Após ter criado essas quatro realidades (céu, terra, dia,
noite) e lhes dado nome, Deus dividiu o dia em "tarde" e
"manhã". Ele continuou separando a terra em "terra firme" e
"mares". Criou ainda "verdura, plantas germinadoras de semente e
árvores frutíferas, que deem fruto segundo a sua espécie e árvores cuja semente
esteja nelas mesmas" (1,11). Logo em seguida, criou luzeiros no firmamento
do céu, como "o luzeiro maior para presidir o dia"
("sol")" e "o luzeiro menor para presidir a noite"
("lua") e as "estrelas", além das "estações", os
"dias" e os "anos'" (1,14 a 1,16). Após ter criado também
animais terrestres e aquáticos, do barro (2, 7) Deus criou o homem
("varão") "à sua imagem" (1, 27), a que deu o nome de
"Adão". Em seguida, Deus tirou uma costela de Adão e criou uma
companheira para ele – uma "virago", feminino de varão –, à qual Adão
deu o nome de "Eva".
Depois que tudo
isso já estava criado, Deus delegou a Adão a tarefa de continuar dando nomes a
tudo mais que foi criado, inclusive à virago, fazendo dele um nomoteta, “o
primeiro criador da linguagem” (Eco 2002, p. 26). “Tendo, pois, o Senhor Deus
formado da terra todos os animais terrestres, e todas as aves do céu, levou-os
diante de Adão para este ver como os havia de chamar; e todo o nome que Adão
pôs aos animais vivos, esse é o seu verdadeiro nome. Adão pôs nomes convenientes
a todos os animais (domésticos), a
todas as aves do céu, e a todos os animais selváticos” (2, 19-20).
Aparentemente só o
fiat lux parece ter sido
verbocriacionista. No entanto, ao criar as coisas supramencionadas, Deus já
tinha uma ideia delas, ou seja, já tinha seu conceito. Com isso, de fato todo o
processo de nomeação mencionado acima pode ser considerado semasiológico, vale
dizer, verbocriacionista.
Até aqui só vimos
uma das facetas da linguagem, a relação palavra-coisa, a nominatio rerum (o dar nome às coisas). Tanto Deus quanto Adão
primeiro se viram diante de algo e, só depois, lhe deram nome: primeiro a
coisa; depois, o nome. Mas, como salienta Eco (2002, p. 62-67), ao falar da
interpretação desses fatos por Dante Alighieri no De vulgari eloquentia (1303-1305), houve também curtos diálogos,
embora não se saiba em que língua eles se deram, ou se foi em algum tipo de
linguagem da natureza, como trovões, relâmpagos, ventos etc. (Eco, 2002, p. 62-67).
Alguns dos minidiálogos se deram entre Deus e Adão (3, 9-12), entre Deus e Eva
(3, 13), entre Eva e a serpente (3, 1-5) etc. Entre Deus e a serpente só há
informação do primeiro à segunda. Curiosamente, não há diálogos entre Adão e
Eva. Em Eco (2002, p. 25-28, 62-67) há interessantes comentários sobre essa
linguagem adâmica.
A exposição da
linguística adâmica continua no evangelho segundo São João. Ele começa dizendo
que “no princípio existia o verbo, e o verbo estava junto de Deus, e o verbo
era Deus (1, 1). Estava no princípio junto de Deus; Todas as coisas foram
feitas por ele; e sem ele nada foi feito (1, 2)”. A argumentação
linguístico-adâmica culmina no versículo 14, em que se lê: “E o verbo se fez carne, e habitou entre nós
(1, 14)”. Trata-se da expressão mais direta do verbocriacionismo de que tenho
notícia. De qualquer forma, a parte do Gênesis
em que primeiro se cria/apresenta a coisa e só depois se lhe dá um nome tem tudo
a ver com a comunicação com os/dos surdocegos. No entanto, a parte que se criou
por fiat se distancia dessa
realidade, uma vez que inverte o processo: em vez de seguir o percurso
onomasiológico (da coisa para o nome), parte do semasiológico (do nome para
coisa). Essa inversão do processo normal pode vista de modo mais flagrante em
São João (1,14), em que se diz literalmente que “no princípio existia o verbo”,
ou seja, primeiro surgiu a palavra, e “o verbo se fez carne”, ou seja, a
palavra criou a coisa.
De acordo com o
verbocriacionismo da linguística adâmica, as relações entre língua e mundo
ficariam como se vê na figura 1, tomando-se T por mundo, embora, na verdade, P
também seja parte dele. Na linguística ecossistêmica esse P natural é
representado por P1, a fim de distingui-lo do P2 do
ecossistema mental e do P3 do ecossistema social da língua (cf.
Couto 2015). Linguístico-ecossistemicamente, sempre que se fala em relações
entre língua/linguagem (L) e mundo (M), entende-se por M o seguinte: M = T + P1.
L
/ \
P-----T
Fig. 1
Já em Couto
(2009), foram apontadas duas hipóteses sobre a relação entre linguagem e mundo
(L-M). A primeira é a da linguagem adâmica, brevemente resumida na figura 1. De
acordo com ela, nossa relação com o mundo está mediada pela linguagem, o que
ficaria mais claro linearizando-se as relações entre P, L e T, o que dá P—L—T.
De acordo com essa concepção, não há relação direta entre as pessoas (P) e o
mundo (T); ela é sempre mediada por L. Na teoria de Humboldt e de seu seguidor Leo
Weisgerber, que também são verbocriacionistas, a linguagem seria um entremundo
(Zwischenwelt) entre a população e o
mundo, ou seja, é ela que cria o mundo. Por isso, não temos acesso direto a
ele; nada que não tenha nome será percebido, já que o mundo foi criado
“linguisticamente” por fiat. Basta substituirmos “o verbo se fez carne”
por “a palavra criou a coisa”. O que é pior, assim formulada, essa hipótese
deixa implícito que a língua é uma coisa que se relaciona com outra coisa, o
mundo. Para não cair nessas duas esparrelas – verbocriacionismo e reificação da
língua –, podemos colocar a questão da forma que está sugerida na figura 2 mais
abaixo, que é a representação da linguística ecossistêmica.
O mito da origem
da linguagem exposto no Gênesis mostra que a linguagem teria surgido a
partir de Deus, mesmo que ele tivesse que entregar aos humanos a tarefa de
terminá-la. Essa origem teológica da linguagem, por incrível que possa parecer ainda
subsiste em muitas teorias linguísticas atuais. No entanto, ela se encontra no polo
diametralmente oposto ao da teoria da linguística ecossistêmica, segundo a qual
são os membros de P, convivendo em seu T que criam a própria linguagem, como está
representado na figura 2. Eles a criam para facilitar a interação entre eles e
o mundo, bem como entre eles mesmos, como se pode ver em qualquer texto mais
recente dessa teoria, além do recém-mencionado. Assim sendo, a linguística
ecossistêmica subscreve, dessa glotogenia, apenas o que fez Adão ao dar nome às
coisas do mundo (onomasiologia) a fim de poder falar delas (semasiologia),
inicialmente com Eva e depois com os filhos. Na formação dos pidgins e crioulos
esse processo pode ser observado praticamente in vitro (Holm 1988, 1989; Couto 1996).
Sabemos que só há
linguagem/língua se houver um grupo de pessoas convivendo em algum lugar que a
formem e usem. Por outras palavras, para haver uma língua (L) é preciso que
haja um povo (P) que a use. Tanto que Mufwene (2001) afirma que a língua é uma
espécie parasita da população. A população, ou povo, por seu turno, só existe
se seus membros estiverem convivendo em algum lugar, o seu território (T), como
se vê no tripé do ecossistema linguístico apresentado na figura 2.
P
/ \
L---T
Ecossistema
Linguístico
Fig. 2
A representação da
figura 2 implica que a existência da língua pressupõe a existência do povo e o
povo pressupõe território. Portanto, a língua só se relaciona ao mundo via
falantes. Isso fica visualmente explicitado linearizando-se a representação,
que daria L—P—T. Para mais detalhes sobre a linguística ecossistêmica, pode-se
consultar Couto (2015).
Aproximemos um
pouco mais o foco sobre os dois tipos de interações ecológicas
(organismo-mundo, organismo-organismo), no caso, como elas se manifestam na
ecologia linguística (outro nome para linguística ecossistêmica). Essas
relações estão representadas na figura 3.
Fig.
3
Na figura 3, vê-se
que grande parte das interações de uma pessoa p1 qualquer do
ecossistema linguístico com outra pessoa (p2) – interações representadas
por (a, a') – existe para mostrar alguma relação dessas pessoas com o mundo
(M). Ecolinguisticamente, as interações entre p1 e p2 (a, a') são chamadas de comunicação, ou interação
comunicativa, enquanto que as interações entre p1 e/ou p2
e o mundo (b, b') são conhecidas pelos nomes de referência,
ou interação referencial. Esses dois
tipos de interação nunca ocorrem isolados: eles são as duas faces da moeda da
linguagem.
Depois de muitas
interações do tipo a, a’ e b, b’, passa a haver um consenso entre p1
e p2 – e os demais px da comunidade –, sobre essas
inter-relações, momento em que o fenômeno do mundo percebido por intermédio de
um ou mais de um dos cinco sentidos passa a ser um conhecimento compartilhado.
Nesse momento, o fenômeno percebido e identificado recebe um nome, que passa a ser
um signo (S) dele. Esse acréscimo ao exposto na figura 3 está representado na
figura 4.
S = signo, palavra
a, a’ = interação entre pessoas à comunicação, interação comunicativa
b, b’ = interação com o mundo
(natural, mental, social) à referência, interação referencial
Veremos que, no
caso do surdocego o processo de aquisição de linguagem é muito parecido com o
dar nomes na linguística adâmica na parte em que primeiro se cria/apresenta a
coisa e depois se lhe dá um nome. Primeiro é preciso que ele identifique algo
do seu mundo para depois alguém lhe mostrar algum sinal que evoque essa coisa
(interação pessoa-mundo: referência, interação referencial). Depois disso, é
possível interagir com essa pessoa usando o sinal em questão e evocando a coisa
em questão (relação pessoa-pessoa: comunicação, interação comunicativa). Vale
dizer, por si só a língua não se relaciona nem com o mundo nem com nada, pelo
simples fato de que ela já é interação, não uma coisa que possa interagir com
outra. Quem se relaciona são as diversas pessoas que compõem P. As duas
interações são bidirecionais, ou seja, cada uma dessas linhas pode se desdobrar
em duas, uma de pessoa para M, outra na direção de M para pessoa.
Vimos que a
linguagem adâmica apresenta as duas dimensões ecológicas básicas das linguagens
em geral e da língua em especial: a relação pessoa-mundo ou interação
referencial – geralmente confundida com relação língua-mundo ou palavra-coisa
–, e a relação pessoa-pessoa ou interação comunicativa. Porém, se partirmos da
proposta da linguística sistêmico-funcional de Halliday (1975, 2014), notaremos
que fica faltando uma dimensão, que esse autor chama de “metafunção textual”, o
texto-discurso; as outras “metafunções” hallidayanas são a “ideacional”,
equivalente à interação referencial, e a “interpessoal”, equivalente à
interação comunicativa. Na linguística ecossistêmica, o texto (T), ou melhor, texto-discurso é visto como um ponto na
rede da interação comunicativa. Como se vê na figura 5, ele está relacionado ao
produtor texto (F), ao receptor (O), à sua expressão física (E) e ao conteúdo
(C) que a expressão manifesta. Tudo isso no cenário da ecologia da interação comunicativa, que compreende ainda
tudo que se relaciona a F (ELE1) e a O (ELE2), como
proposto em Couto (2017: 25).
Fig. 5
Em
síntese, a linguística ecossistêmica vê o texto (T) não apenas nas interações
da dimensão ideacional (E-T-C) e nas da interpessoal (F-T-O). Ele está
imbricado em todos os componentes da “casa do texto” apresentada na figura 5.
Com isso, não há o perigo de reificá-lo, como parece acontecer em praticamente
todas as versões do estruturalismo, inclusive a linguística sistêmico-funcional.
Afinal, texto é um nó numa rede de interações.
No
caso específico da relação linguagem-mundo, primeiro é preciso que haja algo
sobre o que falar, para depois se falar, pelo menos nas situações prototípicas.
O de que se fala não precisa ser, e frequentemente não é, algo do mundo físico,
natural. Pode ser também do mundo mental ou do social. Às vezes abrange duas
dimensões, como a psicossocial ou a psicofísica. Mas, pode também abranger as
três, e falar de algo de natureza biopsicossocial. Diante de tudo que acaba de
ser visto nesta seção do artigo, podemos contraditar a asserção que a abre e
dizer com bastante cautela que, como já está implícito no início da Ideologia
alemã, de Marx e Engels, o mundo cria a linguagem.
3. Formação de
conceitos e lexicalização
As figuras 3 e 4
mostram a formação de conceitos de modo bastante sumário. Como veremos na
ampulheta da lexicalização, representada na figura 6 abaixo, é preciso
aproximar mais o foco e destrinçar o processo em pormenores mais finos.
Ampulheta
da Lexicalização
Fig. 6
Nessa figura, o
triângulo inferior representa o momento psicofísico da percepção (sensação,
identificação), cujo resultado é o percepto
(unidade de percepção). O triângulo superior mostra o momento psicossocial da conceptualização (compartilhamento, lexicalização), cujo resultado é o conceito. Essa figura foi proposta originalmente
em Couto (2007: 128). Se lermos o processo de baixo para cima – da sensação
para a lexicalização –, temos o percurso onomasiológico; no sentido contrário –
da lexicalização para a sensação –, o percurso semasiológico.
A sensação se dá
por um ou mais de um dos cinco sentidos, embora na maioria dos casos um ou
alguns deles sempre atue(m) mais do que os demais. Como se pode ver em
Santaella (2012: 1), "provavelmente devido a razões de especialização
evolutiva, 75% da percepção humana, no estágio inicial da evolução, é visual.
Ou seja, a orientação do ser humano no espaço, grandemente responsável por seu
poder de defesa e sobrevivência no ambiente em que vive, depende
majoritariamente da visão. Os outros 20% são relativos à percepção sonora e os
5% restantes aos outros sentidos, ou seja, o tato, o olfato e o paladar".
Desses 5%, talvez 4% seja para o tato, sobrando 0,75% para o olfato e 0,25%
para o paladar. Infelizmente, essas estatísticas não são muito confiáveis.
Tanto que em sites dedicados ao assunto, já vi também os seguintes
números: visão à 83,0%; audição à 11,0%; olfato à 3,5%; tato à 1,5%; paladar à
1,0%. Tirando uma média das duas estatísticas, teríamos:
visão 79,0%
audição 15,5%
tato 2,75%
olfato 2,125%
paladar 0,625%.
Os números variam,
mas, se ignorarmos que na segunda estatística olfato aparece com 3,5% e tato
com 1,5%, a tendência geral permanece. O sentido que de longe domina em nossas
relações com o mundo é a visão, vindo em segundo lugar a audição. O olfato vem
em penúltimo lugar (com 2,125) e o paladar em último (com 0,625). Creio que a
última estatística (média das duas anteriores) reflete a tendência geral, com o
tato no lugar que lhe cabe, o terceiro. Em termos de percepção à distância o
olfato certamente tem um alcance maior do que o tato, mas, em termos de
quantidade de nossas interações com o mundo, o tato parece ganhar de longe do
olfato. É por intermédio dele que o feto tem seu primeiro contato com o
entorno. É ele que permite aos cegos terem uma linguagem escrita (braile)
substituta da linguagem oral e que lhes permite ler e produzir textos sobre
todo e qualquer assunto.
Alguns fatos
saltam à vista diante da primeira e da terceira estatísticas. O primeiro é que
o sentido em que se baseia a esmagadora maioria do que chamamos de
"linguagem natural" (as línguas orais), não é aquele que domina em
nossa percepção do mundo, a visão (79%), mas o que vem de longe em segundo
lugar, a audição (15,5%) – Steven Pinker apresenta algumas razões para isso,
como veremos mais abaixo –. Segundo o Ethnologue, no mundo existem cerca
de 7.102 línguas orais e 137 línguas de sinais (Romaine, 2018: 40), ou seja, apenas
1,9% das línguas do mundo se manifestam pelo canal visual. Quanto aos
surdocegos, sua interação com o mundo e sua comunicação com as pessoas de seu
meio se dão pelo tato, o sentido que vem estatisticamente em terceiro lugar,
mas sem o recurso adicional da audição, disponível para os cegos. Tanto que
eles dominam a língua oral à perfeição.
Os sentidos da
percepção à distância são a visão e a audição. A visão tem a ver com a
velocidade da luz, cerca de 299.792.458 m/s; audição, com a velocidade do som,
aproximadamente 340 m/s. É por isso que vemos um relâmpago e, só algum tempo
depois vem o trovão. Em terceiro lugar vem o olfato, perceptível a uma
distância bem menor do que a do som. A percepção tátil só se dá pelo contato
físico, o que acontece também com o paladar. Como disse Da Sacco (2007, p. 41)
"o mundo da pessoa surdocega se restringe apenas ao raio do alcance de seus
braços", ou seja, daquilo que consegue tocar. Talvez esses números
expliquem porque a maioria das línguas têm por canal a audição e a visão,
ficando o tato em terceiro lugar, para os surdocegos, que dispõem só dele. O
olfato também permite alguma percepção sem contato, a pequenas distâncias. No
entanto, ele é inapropriado para a interação comunicativa, pois, para formular
uma mensagem a enviá-la pela via olfativa seria necessário manipular algo que
exale algum odor, com o que teríamos uma comunicação bastante onerosa, além de limitada.
Mais difícil ainda seria duas pessoas comunicarem entre si pelo canal gustativo,
pois, para cada mensagem-sabor, seria necessário colocar alguma coisa na boca
do receptor.
A despeito de tudo
que acaba de ser dito, e talvez por isso mesmo, o tato é o sentido da comunhão,
pois revela mais proximidade, contato físico, como no “contágio emocional” de
Schaff (1968: 127-13). Esse autor apresenta diversos casos que entrariam nessa
categoria de comunicação-comunhão, como a da mãe com o recém-nascido. Visão e
audição são menos comuniais nesse sentido, um pouco menos do que o olfato e
muito menos do que o paladar.
4. A interação dos
surdocegos com as pessoas e com o mundo
4.1. Maud
Maud Rainey Scott
nasceu surda em 1895 e perdeu a visão logo depois. Em 1900, quando sua primeira
instrutora Janie Watkins começou a trabalhar com ela, Maud não conseguia andar
nem ficar de pé, seus hábitos eram de um bebê e seu desenvolvimento mental era
próximo ao de uma criança de 6 meses. Permaneceu
deitada no berço dormindo dia e noite por 6 anos, ou então balançando-se
freneticamente. Alimentava-se basicamente com leite, recusando qualquer outra
coisa. Comer e beber eram seus únicos desejos, que ela obtinha chorando,
gritando e esperneando. Maud brincava com os próprios dedos, mas não dava
nenhuma atenção a objetos postos nas suas mãos ou no colo.
Maud
tem uma mente viva e equilibrada, mas é preguiçosa. Tão preguiçosa e voluntariosa
que precisava precisa sentir uma pressão firme, mas suave. Do ponto de vista do
temperamento, ela é muito nervosa e sensível. Ela pode mostrar-se doce a afetiva.
Sua cuidadora Janie Morris sentiu que precisava impor-lhe limites. Ela reagia
violentamente à mais leve oposição de alguém, batendo a cabeça no chão, ou no
ferro da cama com as mãos ou com qualquer coisa que pudesse pegar. Durante um
certo tempo, resistia a tudo que Janie fizesse para ela ou com ela. No entanto,
com o tempo Maud começou a aprender que às vezes precisava concordar com Janie,
mas não admitia nenhuma outra autoridade, que ela acabou aceitando mais tarde,
contanto que fosse com a aprovação de Janie. Depois, ela passou a fazer ela
mesma as coisas que desejava, em geral com agitação.
Dois
anos depois, ela aprendeu a andar, mesmo que tropegamente, alimentar-se com
dificuldade, a tirar as próprias roupas quando desabotoadas, pegá-las e colocar
na cadeira e outros atos rotineiros. Dentro de pouco tempo, ela passou a
caminhar como uma criança normal por uma longa distância sem se cansar. Comidas
preparadas e postas no seu prato ela ingeria por conta própria. Começou também
a proferir algumas palavras, mas apenas 3 por conta própria, não apenas
repetindo as que recebeu. São elas: ÁGUA, COMIDA, CAMA.
Esses
hábitos foram se consolidando diariamente. De vez em quando, porém, se sua
vontade não fosse satisfeita, ela desabava a chorar repentinamente.
Subitamente, ela parava, sentada calmamente e com as mãos apertadas. Se sentia
que tinha "vencido", aparecia com um largo sorriso de felicidade.
Maud
adorava torradas. Quando lhe deram outra coisa, ela tirou da boca, cutucou a
treinadora para indicar que não queria aquilo. Janie deu essa coisa de novo a
ela, mas ela a manteve à distância, pôs os dedos nos lábios de Janie, querendo
"comprá-la". Janie afastou os dedos dela gentilmente; ela ficou
resignada por um instante, mas lágrimas começaram a rolar de seus olhos. Janie
a tirou da cadeira e a abraçou para mostrar que compreendia as razões dela. Com
isso, Maud limpou as lágrimas, voltou a sentar-se na cadeira por conta própria
e comeu o que lhe tinha sido dado, sorrindo, como se gostasse.
Janie
Morris conclui que tudo isso tem muito significado, mais do que algumas
palavras sinalizadas com os dedos. Não que estas não sejam importantes. Antes
de palavras, é preciso ter boas fundações, como um ser fisicamente bem,
obediente e que saiba se controlar, enfim, que saiba interagir (Morris 1904).
4.2. Janine
Ainda no berçário
Janine sofreu uma lesão no nervo auditivo, ficando surda. Ao sair do hospital,
constataram que ele era também cega. Não passou pelo estágio de engatinhar,
começando a andar com um ano e meio. Subia em tudo que conseguia. A mãe
"lia" seus sinais corporais, tais como bocejo para sono, choro para
insatisfação, riso para satisfação etc. Começou a segurar a mamadeira e
brincava com a mãe. De qualquer forma, até 5 anos, Janine não tinha nenhuma
linguagem. Na escola de surdos, com 6 anos recebeu exercícios de
desenvolvimento motor. Não interagia com as outras crianças. Começou uma fase
de autoagressão; não aceitava o toque de ninguém e agredia a mãe e a si mesma.
Embora não interagisse com as pessoas, explorava o meio, usava as calças do pai
e os sapatos da mãe.
Quando o pai
chegava, proferia o som [pu:tu] bem alto e ela reagia com o som [pa.pa.pa.],
procurando por ele. Provavelmente ela percebia apenas uma ressonância do som no
seu corpo. Na prática, parece uma percepção tátil. No entanto, começou a gostar
de interagir com quem conhecia como o irmão mais novo, que jogava a bola para
ela e ela reagia com prazer. Passou a brincar com o violão do pai. Uma inovação
importante é que a mãe começou a passar a mão da filha sobre objetos. Além de
[pa:pa:pa:], passou a proferir o som [mamã]. A interação já estava bastante
avançada. Tanto que ainda aos 5 anos "gritava para pedir ajuda, quando não
encontrava chão firme para pisar ou quando subia em algum lugar e não conseguia
descer". "Começa uma comunicação rudimentar pela datilologia; a mãe
prega papéis nas paredes com nome dos objetos do entorno em braille" (Almeida,
2008: 114). Além disso, aprendeu a comer sozinha e a escovar os dentes.
Intuitivamente,
sempre que a mãe lhe dava banho ou água para beber, fazia o respectivo sinal,
com o que ela aprendeu o primeiro sinal, ÁGUA. O segundo foi BANHEIRO: ela
passou a pôr a mão na fralda quando queria fazer xixi. O terceiro sinal foi
COMER. O sinal de MAMÃE foi adquirido porque a mãe punha a mão da filha em si
quando fazia esse sinal. Enfim, Janine começou a se interessar pelos objetos do
seu entorno e sempre perguntava pelo seu nome, com o que aprendeu o sinal NOME.
Nesse ponto, Janine ficou menos agressiva. Já percebia que a escola era para
"algo sério", mas a casa era lugar só para brincar.
A partir de 1999,
a mãe procurou integrar Janine com outras pessoas em situação semelhante e a
situá-la no tempo dizendo-lhe BOM DIA, e qual era o dia da semana, a rotina a
ser seguida no dia, fatos que Janine assimilou relativamente bem
Quando explorava o
ambiente, colocava as mãos à frente e sempre levava um pé para verificar se
havia chão para pisar. "Quando não encontrava chão firme, ficava parada
gritando para que a mãe viesse em seu socorro" (Almeida 2008: 143). Janine
se mostrou uma menina inteligente, chegando até mesmo a improvisar solução para
problemas que surgiam. Ela percebia o que havia no percurso da escola para
casa, com base no tempo, nas curvas que o carro fazia, nas lombadas etc. Certa
feita, na hora do banho, na casa da pesquisadora, esta lhe pediu que tirasse
anel, brinco e outros pertences e os deixasse em cima de uma mesa. Terminado o
banho, ela contornou a cama e pegou suas coisas sobre a mesa. Chegou um ponto
em que a própria Janine criou o sinal ENTENDE, o que foi assimilado pelos
colegas de escola.
4.3. Sam
Aos
cinco anos de idade Sam ainda percebia um pouco de luz e tinha uma perda média
de audição. Na época do estudo, ele usava aparelho auditivo, de modo que regia
a sons do ambiente e imitava alguns sons da fala ativamente. Ele entendia o
significado de cerca de 10 objetos de uma comunicação mais expressiva. Do ponto
de vista da evolução, ele estava no nível de uma criança de 14 meses, com a
capacidade comunicativa de uma de 11 meses e o desenvolvimento físico de uma de
7 meses. Na verdade, ele não andava nem engatinhava, tendo um tônus muscular
muito baixo. Ele convivia com um grupo de crianças de 3 a 10 anos sob a
supervisão de uma cuidadora que interagia com ele sobre um colchão estendido no
chão.
As interações
visavam a provocá-lo, mostrando algo na expectativa de uma reação de sua parte.
Essas reações eram tanto positivas (de aprovação) quanto negativas (de desaprovação).
Com isso ele estava sendo treinado para a troca de turno, embora algumas sobreposições
de turnos tenham sido observadas. Sam apresentava alguns comportamentos estereotipados,
como bater palmas, pôr a mão sobre o olho direito, bater ritmicamente nas
coisas em seu redor e esfregar as pernas. Às vezes Sam batia na manta e a
cuidadora reagia dizendo boom. Sam estendia o pé e ela fazia cócegas na
sola dele.
Embora os autores
do presente artigo enfatizassem mais questões metodológicas e a validade do
método Diagnostic Intervention Model (DIM) de um deles, esse relatório é
adicionalmente interessante porque há uma preocupação com a questão da harmonia
(harmonious interactions), para que haja interação comunicativa, o que
em linguística ecossistêmica chamamos comunhão.
5. A comunicação
com surdocegos e a interação comunicativa
Como se pode ler
no site alemão Deutsches Taubblindenwerk*, "as mãos são
os olhos, os ouvidos e a voz das pessoas surdocegas". Isso significa que uma criança surdocega de nascença
só pode perceber o mundo pelo tato, o que a levaria a ficar isolada da
sociedade. Afinal, ela está privada dos dois
sentidos mais próprios para interação com o meio, sobretudo o meio mediato. O
surdocego tem que se valer única e exclusivamente do tato e, talvez, do olfato
e do paladar que são dos menos apropriados para uma interação comunicativa.
Vejamos o que nos ensinam os três estudos de caso
resenhados na seção anterior. Das três crianças, Maud e Janine são praticamente
surdocegas de nascença. Talvez por isso mesmo seu desenvolvimento tenha apresentado muitas coincidências. As duas se
mostravam bastante nervosas, às veze agredindo até a si mesmas. Não aceitavam
ser contrariadas. Ambas eram manhosas. De certa forma, isso revela
inteligência. Maud, por exemplo, se mostrou feliz quando percebeu que tinha
“vencido” uma pequena disputa. Ambas aprenderam sinais para ÁGUA e COMER, sendo a
terceira palavra de Maud CAMA e a de Janine BANHEIRO. Ambas começaram a cuidar
de si próprias, como pôr a roupa e tirá-la. No último caso, colocavam-na em cima
da mesa.
Quanto a Sam, adquiriu a surdocegueira mais tarde, embora
tivesse um desenvolvimento físico bem pior do que o de Maud e Janine. Com
efeito, ele não andava nem engatinhava. Mas, por ser capaz de perceber um pouco
de luz e ter um pouco de audição até os cinco anos, reagia a alguns sons do
ambiente e imitava sons da fala. Em
termos de linguagem (de sinais e/ou verbal), ele estava um pouco adiantado em
relação às duas meninas, tendo aprendido a regra de troca de turnos bem cedo.
Janssen et al. (2011) ressaltam a necessidade de uma certa
preparação para que haja comunicação, o que eles chamam de
"interações
harmoniosas“ (harmonious interactions). Vale dizer, os autores admitem a
necessidade da comunhão. No caso específico de Maud, Morris (1904) salienta a
importância do reconhecimento do entorno, de uma boa disposição corporal e boa saúde
para todo o processo de desenvolvimento interacional dos surdocegos. Nisso a
autora confirma uma das ideias mais importantes na linguística ecossistêmica,
que é a de colocar as pessoas antes da linguagem. Afinal, sem pessoas não há
linguagem, elas são hospedeiras dela (Mufwene 2001).
Como podemos ver sobretudo em Janine, a aprendizagem de
qualquer sinal, signo ou palavra se dá de modo diametralmente oposto ao que
vimos na linguística adâmica. Nesta é a palavra que cria a coisa – "o verbo se fez carne" –, enquanto que a criança surdocega precisa primeiro
tomar conhecimento da coisa para, só depois, poder aprender um nome que lhe seja
atribuído. Como dizia a escola dialetológica Wörter und Sachen (palavras e coisas), não há palavra sem uma coisa
a que ela se refira. Tanto que, já na passagem do século XVII para o XIX o espanhol Lorenzo
Horvás y Panduro (1735-1809) mostrava um sinal tátil para "pão" e
dava um pedaço de pão ao surdocego. Mais, ele já escrevia essa palavra assim,
sem hífen.
Independentemente da idade do surdocego, é necessário começar
do começo, pelos sentidos da proximidade, como se faz com os recém-nascidos:
começar pelo tato e talvez até mesmo pelo paladar, dando de beber e comer, e
pelo olfato, pois, é provável que a criança sinta o cheiro do corpo da mãe. Primeiro, é preciso que a pessoa tenha um
contato com aspectos do mundo mediante os órgãos sensoriais à sua disposição
e/ou os que forem mais adequados para cada situação. No caso dos surdocegos, o
sentido é necessariamente o tato.
A comunicação dos/ com os surdocegos, pelo menos no
início, é uma comunicação basal, básica, de base. Ela tem sido chamada também
de comunicação háptica – do grego haptikós
‘relativo ao tato’ –, que se dá não só entre os humanos, mas também
entre os animais. É o tato que permite sentir prazer, dor, calor, frio etc.
Como já observado acima, ele é o sentido da comunhão, da intimidade, como no
abraço, no estender a mão como cumprimento, nas carícias, no beijo e na relação
sexual. É um tipo de interação pré-verbal, mas que pode acompanhar a interação
verbal, mais em algumas culturas, como a africana, menos em outras, como a
germânica.
O fato é que, mais
cedo ou mais tarde, sempre haverá algum tipo de entendimento, como os diversos
exemplos mencionados neste artigo mostram. A interação precede a interação
comunicativa (comunicação) e a comunicação precede o sistema. Tanto que na
linguística ecossistêmica as regras interacionais vêm antes das regras
sistêmicas (gramática),
cronológica e logicamente (Couto 2015). Melhor, as segundas são parte das
primeiras. Tudo isso significa que Pinker (1995) não tem razão quando fala em
"instinto da linguagem". Para ele, como gerativista que é,
"linguagem" é sistema, e sistema é uma abstração feita pelo linguista
(Coseriu 1968), logo, não pode ser instintivo. O que é instintivo é a
interação, inclusive a interação comunicativa (Oliveira e Paiva 2018).
6. Discussão
Retomando a
discussão em torno da ampulheta da lexicalização, temos o momento
onomasiológico, aquele em que as palavras – e outros aspectos da língua – surgem
na práxis dos membros da população em sua convivência no respectivo território.
Mas, a certa altura, às vezes concomitantemente, ocorre uma virada
semasiológica, em que a língua e seus componentes (palavras, frases, textos
etc.) adquirem uma relativa autonomia frente ao mundo, àquilo que lhes deu origem
e que representam (Couto 2007: 151-155), podendo os falantes referirem-se a
outras coisas, fazer ficção, poesia, filosofia etc. por meio deles. É por isso
que Eco (1979: 59) disse que língua é o que permite mentir. Tanto que na fase
inicial de aquisição da língua a criança não mente. Ela só o faz quando chega à
virada semasiológica, quando entra no mundo dos adultos
Os ouvintes
dispõem das línguas orais; os surdos, das línguas de sinais; os cegos, do
alfabeto braille, além da língua oral. Para os surdocegos, porém, por não terem
visão nem audição para perceber o mundo, sobretudo o mediato, têm muita
dificuldade para conhecer o mundo e, portanto, simbolizá-lo. O tato só permite
perceber o que a mão alcança, como vimos acima. Por isso, não há “linguagens surdocegas”.
Cada caso é um caso, ou seja, cada surdocego específico poderá se comunicar por
uma ou mais das linguagens disponíveis, como a língua oral, a visual (de
sinais), a tátil (braille), ou por uma linguagem inventada por quem cuida dele.
Tudo vai depender da idade em que a pessoa ficou surda e/ou cega, dos recursos
tecnológicos disponíveis, do treinamento dos cuidadores etc. A propósito,
Steven Pinker diz que “há vantagens óbvias no uso da boca e do ouvido como
canais de comunicação. Não há nenhuma comunidade de ouvintes que opte pela
língua de sinais, mesmo sendo ela tão expressiva quanto a oral. A fala não
requer boa luminosidade, contato face a face nem a monopolização das mãos e dos
olhos, além de poder ser ouvida a longas distâncias quando gritada ou
cochichada para manter segredo. Mas, ao fazer uso do meio sonoro, a fala
precisa superar o fato de que o ouvido é um estreito gargalo informacional” (Pinker
1995: 161). Faltou acrescentar que nenhum grupo de surdos abdicaria da
linguagem visual em prol de uma tátil. Afinal, esta exige contato físico.
Voltando
ecossistema linguístico da figura 2, podemos dizer que a linguagem/língua (L)
nasce da experiência das pessoas com o mundo, com o seu território (T), sem
esquecer que o mundo (M) é constituído por T mais a parte físico-natural de P,
ou seja, M= T + P1. De certa forma, inicial, ontogenética e
filogeneticamente, elementos de L e o próprio L como um todo refletem aspectos
de M, mesmo que apenas os aspectos que os membros de P conseguiram perceber.
Pode-se, portanto, dizer que L foi criada como reflexo das coisas e aspectos do
mundo. Esse reflexo é filtrado por P, portanto, L não deixa de ser uma representação
do mundo (natural, mental, social). Até aqui, temos a fase onomasiológica do
processo de formação de conceitos e de lexicalização. Porém, após formada por
esse processo, L e seus componentes – como as palavras – adquirem uma relativa
autonomia frente ao mundo, o que representa um formidável aumento do poder
expressivo-comunicacional de L. A estas alturas, os membros de P podem falar
não apenas dos aspectos de M que deram origem a L. Eles podem também fazer
ficção, poesia e filosofia. Podem inclusive mentir: diante de uma árvore dizer
“isto é uma pedra”. É isso que leva os verbocriacionistas, praticantes de
linguística adâmica, a pensarem que “a linguagem cria o mundo”.
No caso específico
da criança, temos o exemplo de Aninha, que começou interagindo com o pai pelo
tato; com sete dias de idade começou a acompanhar movimentos da cabeça dele com
o olhar e, meses depois, começou a interagir por sons. A primeira palavra (ÁGUA)
veio com onze meses de idade (Couto 2002).
6. Observações
finais
A comunicação dos
e com os surdocegos mostrou-se uma boa instância para se discutir a relação
palavra-coisa. Com efeito, primeiro é preciso apresentar-lhes a coisa para, só
depois, lhe dar um nome, processo que se dá entre o surdocego e a pessoa que
cuida dele, ou seja, a referência surge no processo de interação. Até aqui há
coincidência com o que se deu no Gênesis.
Mas, diferentemente do Gênesis, com
os surdocegos a formação da linguagem se dá na própria interação; não há um ser
superior que cria a relação palavra-coisa para só assim haver atos de
comunicação. É bem verdade que houve alguns minidiálogos, como foi apontado
acima. No entanto, eles não se deram na linguagem que estava sendo criada; na
verdade, não se sabe em que linguagem. Mas, o simples fato de ter havido
“diálogos”, a referida passagem da Bíblia
menciona as duas facetas da moeda da linguagem, a referência e a comunicação.
Há uma terceira
questão linguística na Gênesis de
interesse para a ecolinguística. É a do multilinguismo, como se pode ver no
mito da Torre de Babel (11, 1). É desse assunto que trataram dois dos primeiros
autores que associaram língua e ecologia. Os primeiros são Voegelin &
Voegelin (1964); o segundo é o próprio pai da disciplina, Haugen (1972). Na
mesma linha temos ecolinguistas como Norman Denison, Albert Bastardas Boada e
Louis-Jean Calvet.
Por ser verbocriacionista,
a linguística adâmica deixa implícito que só temos acesso ao mundo via
linguagem. Até teorias linguísticas modernas perfilham essa concepção, como a
filosofia de Huboldt e a Hipótese Sapir-Whorf. Um exemplo que confirmaria essa
hipótese que eu tenho dado é o da palavra obï
no tupi e no guarani. Ela designa tanto o que chamamos de “verde” quanto o que
vemos como “azul”. Com isso, a linguística adâmica está dizendo que os falantes
dessas línguas “não veem” a distinção que vemos porque suas línguas só têm a
palavra obï para designá-los.
Fernando Pessoa também é dessa opinião, ao dizer que
Saudades,
só portugueses
Conseguem
senti-las bem,
Porque
têm essa palavra
Para
dizer que as têm.
Mas, pelos cinco sentidos
temos sim contato direto com o mundo. Se perguntarmos ao falante de
tupi-guarani se o céu limpo e as folhas das árvores têm exatamente a mesma cor,
ele coçará a cabeça e dirá: “bem, não é exatamente a mesma coisa, mas é tudo obï”, simplesmente porque ele tem o
sentido da visão igual ao dos falantes de português. Enfim, eu poderia dar
exemplos parecidos do russo, do bretão e de diversas outras línguas.
Notas
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