Pode parecer estranho, mas na linguagem quase todos nós podemos ser reacionários, quando não claramente fascistas. Quem nunca se pilhou, mesmo alguns linguistas "liberais", dizendo que construções como "nóis vai trabaiá" estão erradas? Qual professor de português, e eu o fui por muitos anos, nunca disse que "assistir a um filme" é melhor do que "assistir um filme", mesmo sabendo que o que todo brasileiro usa é a última regência? Enfim, esses são apenas dois exemplos de julgamentos da linguagem popular, regional e/ou rural do Brasil como se fosse de alguma forma inferior à que o sistema escolar tenta impor, via gramática normativa. Mas, o preconceito na linguagem não se limita a esse tipo de julgamento. Ele se manifesta sob muitas outras formas. Como se pode ver em Couto (1993) e em Bagno (1999), variedades linguísticas como as recém-mencionadas seriam "erradas", um falar xacoco (ou enxacoco), como se dizia antigamente, só para os juízes do certo e do errado. Porém, se quisermos continuar usando expressões como "falar certo" e "falar errado", são pessoas presumivelmente "cultas" que cometeriam erros de linguagem. Entre esses "erros" estariam hipercorreções da elite do tipo periculosidade por perigo, miserabilidade por miséria, credibilidade por crédito etc. (Couto, 2005: 91), além de outros exemplos como os de Couto (1985). Quanto aos representantes do povão, as hipercorreções que cometem se devem à estigmatização de sua linguagem. Com isso, tentam se "corrigir", quando falam com um habitante da cidade, tentando adaptar-se à presumível linguagem dele, dizendo coisas como malmita (marmita) e telha (teia de aranha), uma vez que sua iodização da lateral palatal (trabaiá), rotacização do "l" em posição posvocálica (carça 'calça') e como segundo elemento do grupo muta cum liquida (praca 'placa') são ridicularizadas pelos urbanitas.
Para começo de conversa, seria interessante salientar que o princípio da ecologia que subjaz a toda a argumentação é o da diversidade, no caso, diversidade sociocultural. Ser liberal, não ser preconceituoso é precisamente aceitar a diferença, a diversidade. Não é para menos que a grande maioria dos ecolinguistas, entre eles o seu maior incentivador, Alwin Fill, enfatize justamente essa ideia, em todas as suas manifestações. Um ecolinguista (e um linguista, por sinal) jamais consideraria a expressão "nóis vai trabaiá" como errada. Para ele, trata-se simplesmente de mais uma das inúmeras maneiras de se expressar a ideia em questão. Nesse sentido, ela é manifestação da grande variedade linguística que existe no português brasileiro, em especial, e no português em geral. Não devemos ter preconceito nem contra a variante literária "amanhã nos trabalharemos", por ser muito culta (sic!). Ao lado de outras, como "amanhã nós vamo trabalhá" e "amanhã nós vamos trabalhar", elas espelham a complexidade da comunidade em que a língua é usada. Aliás, o número de pessoas que dizem "amanhã nóis vai trabaiá" deve ser muito maior do que o dos que dizem "amanhã nós trabalharemos." Isso porque ela é usada tanto na zona rural e nas pequenas cidades quanto na periferia dos grandes centros urbanos.
Grande parte dos preconceitos tem sido designada por um palavra terminada em -ismo. O primeiro que eu gostaria de discutir é o antropocentrismo, ideologia que consiste em pôr os humanos no centro do universo, sendo que as demais espécies, bem como tudo mais, existem para servi-los, como já dizia Protágoras. Uma das tônicas do livro de Alwin Fill (1993) é a de que todas as línguas existentes veem o mundo de uma perspectiva antropocêntrica. Isso significa que o vocabulário, e às vezes até mesmo partes da gramática, se referem ao mundo com base na utilidade (e seu contrário) que a coisa designada possa representar para os falantes. Com relação ao mundo inorgânico, frequentemente consideramos como tempo bom os momentos em que o sol está brilhando. Quando está nublado e/ou chovendo, teríamos mau tempo. Nesse caso, seria uma utilidade aparente, pois é a chuva, combinada com a energia solar, que faz a vida brotar na terra. Onde não há chuva não há vida. Aqueles que acham que o bom é não ter chuva deveriam ir para o deserto do Sahara.
No âmbito da vida vegetal, usamos termos pejorativos, como erva-daninha, também chamada de praga. Normalmente, dividimos as espécies da flora em plantação e mato. Em certo sentido, esses três termos (erva-daninha, praga, mato) são sinônimos, mas há matizes de significação entre eles. Por exemplo, praga é aquela espécie que teima em nascer junto com uma plantação cultivada, como milho, arroz etc. O termo erva-daninha já fala por si: é aquela planta que "prejudica" o que estivermos cultivando. Mato seria o termo menos forte dos três: designa simplesmente todo tipo de vegetação que "não interessa" diretamente aos humanos. No interior de Minas Gerais, existe ainda a erva, que é uma planta venenosa. Se algum animal a comer, morrerá fatalmente. Isso significa que ela seja algo ruim? Negativo. Se ela está lá, talvez há milênios, é porque é importante no ecossistema local. Se não é útil para o gado, nem para os humanos, são outros quinhentos. Gado e humanos são apenas duas espécie a mais no mundo.
A atitude negativa contra o mundo vegetal se manifesta por outros meios. Uma vez que erva-daninha, praga ou mato "não servem para nada", é preciso limpar o terreno para o plantio de espécies "nobres", ou seja, aquelas que nos são úteis. Esse conceito deixa implícito que a presença de plantas que não nos são úteis faz com o terreno esteja "sujo". Ora, é justamente a "sujeira" que alimenta a terra para o cultivo, é ela que constitui a matéria orgânica que servirá de nutriente para as plantas. Portanto, "limpar" um terreno é fragilizá-lo, é diminuir sua capacidade de fornecer nutrientes para as plantas. Daí a necessidade de adubos químicos, além dos pesticidas e até herbicidas que, segundo Augusto Ruschi são biocidas, vale dizer, assassinos. Quem primeiro chamou a atenção para esse fato foi Rachel Carson (1962).
O antropocentrismo se manifesta mais contundentemente em nossas relações com os demais animais (como se nós não o fôssemos). Nós os classificamos em animais domésticos, domesticados e silvestres (bicho). Essa classificação tem a ver diretamente com o grau de utilidade que os animais em questão têm para nós. Os domésticos são usados para a alimentação (carne, leite etc.), para o trabalho (cavalos, bois), para guarda da casa ou companhia (cachorros, gatos) e assim por diante. Os domesticados amiúde são usados para o lazer, para entretenimento (papagaio, macaco, mico). Os silvestres são "bichos", alguns "perigosos", qualificados como ferozes; outros são "nocivos", como as raposas que comem as galinhas. Na verdade, cada um deles tem sua função na imensa cadeia alimentar que constitui a teia da vida. Muitos exemplos históricos mostram que a supressão, ou introdução, de um deles pode levar a um perigoso desequilíbrio no ecossistema, embora a supressão seja mais perigosa do que a introdução.
Como salienta Fill (1993: 107-109), existem diversas expressões em nossa linguagem cujo objetivo é nos distanciar dos animais "irracionais." Em alemão, se diz essen 'comer' para os humanos, mas fressen 'devorar' para os animais; Mund 'boca' (humano), Maul 'boca' (animais). Em português, dizemos mão/pé para os humanos, mas pata para os animais "irracionais." Matar uma pessoa é assassinar, mas matar um animal é abater ou sacrificar. Entre os atos de matar animais de que menos temos consciência estão caçar (= matar animais por prazer) e pescar (= matar peixes por prazer). Matar plantas é desmatar, cortar árvores, roçar e até limpar, dependendo das circunstâncias.
Um tópico antropocêntrico recorrente na pejorativização de animais é o uso de seu nome para designar qualidades ruins. Entre os diversos termos, temos animalesco, bestial, selvagem, simiesco, burro, porco, cavalo, vaca e muitos outros. É bem verdade que alguns têm conotação positiva, como garanhão, cobra, leoa, leão, gavião, águia. Trata-se de exceções que confirmam a regra, sendo que algumas delas se enquadrariam em outras categorias, como a do machismo (garanhão), portanto, não são tão positivas assim.
Passemos ao etnocentrismo. Toda língua é até certo ponto etnocêntrica. Os gregos, por exemplo, se consideravam civilizados, e todo os demais povos eram bárbaros, uma vez que não os entendiam. A palavra "bárbaro" é uma onomatopeia justamente para designar os povos cujas línguas eles não entendiam, que "não tinham língua", apenas faziam [brbr]. Falar, para eles, era falar grego. O nome que os habitantes da Europa Central dão aos povos do Leste é eslavo, ou seja, escravo. Os eslavos, por seu turno, chamam os alemães de neamts, que quer dizer algo como mudos. Para os etnocêntricos, certo é o que pertence a sua cultura. O que existe em outras culturas, mas não na sua, é errado, é feio, está fora dos "padrões."
Um preconceito muito arraigado, mesmo entre alguns linguistas, é o de considerar línguas que têm uma numerosa literatura como "língua de cultura." Isso está intimamente associado à atitude etnocêntrica dos gregos. De certa forma, cultura teria que ir na mesma direção da tradição greco-latina, as "línguas de cultura" devem ter uma "grande" literatura. Nesse contexto, as línguas nativas, étnicas da África, América e Ásia seriam meros "dialetos." No entanto, como disse, se não me engano, Sekou Touré, línguas de cultura na África são justamente as línguas étnicas africanas. São elas que expressam a rica tradição cultural (oral) dos povos do continente.
Haarmann (1996: 847) fala em chauvinismo linguístico, que seria uma variedade de etnocentrismo. Ele consistiria em um tipo de "consciência coletiva, por parte dos representantes das grandes 'línguas de cultura' (como o orgulho de muitos russos sobre a 'nobreza' de sua língua), na desqualificação das variedades linguísticas 'incultas' (por exemplo, chamar línguas regionais de patois na França) ou na intolerância para com as línguas de minorias (por exemplo, contra as línguas indígenas brasileiras, pela maioria da população que fala português) e outras manifestações de valoração linguística coletiva."
O androcentrismo é outra manifestação de preconceito linguístico. De um modo ou de outro, todas as línguas são androcêntricas. Isso porque o homem geralmente tem tido mais poder do que a mulher, o que desembocou nas sociedades patriarcais. Uma das expressões que revelam androcentrismo e/ou sexismo, é o masculino generalizante, que engloba o feminino. Assim, se em uma sala de aula de 200 estudantes, se apenas um é homem, fala-se em os alunos. Só dizemos alunas se não houver nenhum aluno presente. Referir-se ao órgão sexual masculino frequentemente é algo "engrandecedor", como saco, caralho, pau, cacete, bilau e o mais comum pinto. Tanto que muitos homens estão sempre ponto a mão no próprio pênis em diversas situações, às vezes até mesmo em público, com o fito de checar se sua masculinidade ainda está no lugar. O órgão sexual feminino é muito mais tabu do que o masculino. Por exemplo, termos como perereca, perseguida, xoxota e florzinha até que podem ser ouvidos. Porém, dificilmente entrariam em expressões fixas, como os masculinos podem entrar, a exemplo de grande pra caralho, alto pra cacete e outras, além da exclamação caralho! Tenho certeza de que muita gente se sentirá um tanto escandalizada ao ler a palavra buceta em um texto científico. Com efeito, ela parece ser o maior tabu linguístico do português brasileiro, como disse Hebe Camargo. Por que não temos o mesmo sentimento frente ao nome do órgão masculino? A resposta é o machismo, sub-ramo do androcentrismo, que visa a inferiorizar a mulher.
Ainda no contexto do androcentrismo, temos a questão da própria relação sexual. Frequentemente, se diz que o homem come a mulher, ou que a mulher dá para o homem. Antigamente, a mulher falava em ser possuída. O que se quer dizer com isso? Pura e simplesmente que o ato sexual é algo que o homem "faz" na mulher. Ela é apenas um objeto passivo de prazer para o homem, que é o sujeito do prazer. Não se trata de uma troca, de algo de que os dois gostam e querem fazer juntos, para o prazer de ambos. Parece até haver um certo sadismo masculino, uma vez que o homem "come" a mulher, "mete" nela. Como salientou Mazel (1996: 140), o termo penetração indica uma ação encarada da perspectiva do homem. Por que não se diz que é a mulher que come o homem? Em vez de penetrar, dever-se-ia falar em tragar, em devorar, em engolir ou algo semelhante, que é o que efetivamente acontece.
Um outro termo altamente machista para designar a relação sexual é trepar. Esse verbo significa pôr-se em cima, além de outras conotações, todas elas referentes ao topo, estar por cima. Ora, "estar por cima" é sinônimo de dominar. Com isso, o verbo indica a posição dominadora do homem. Em nossa cultura, ninguém quer estar "por baixo", ou "debaixo" de algo ou de outrem. Pode até acontecer de, na prática, o homem ficar fisicamente sobre a mulher, mas isso não é o mais importante. Tanto que ela pode também ficar sobre o homem. O importante é que seja uma relação prazerosa para ambos. O ecofeminismo, entre outros movimentos, tem lutado para reverter essa situação.
Note-se que o preconceito, o tabu, se inverte quando se trata do próprio órgão sexual em si. O da mulher pode, em certas circunstâncias, ser mostrado em fotografias e até mesmo em outdoors. O do homem, porém, jamais. Não é permitido mostrar-se uma foto de um homem nu, de frente. De novo, trata-se de manifestação do machismo. O órgão da mulher interessa ao homem, portanto, deve ser mostrado, para que ele possa deliciar-se com a visão dele. O do homem, ao contrário, não se mostra. O homem não faz questão de que a mulher o veja nu, a não ser na hora de "comê-la."
Ainda no âmbito do machismo, temos o preconceito contra os homossexuais. Eles são sempre alvo de piadinhas, de risos de deboche. Palavras como bicha, viado, boiola, sapatão e variantes são sempre ditas em tom pejorativo. O preconceito contra eles e elas às vezes chega até à agressão física. Sobretudo grupos neonazistas têm agredido e até matado homossexuais nas ruas. Um fato interessante é que, provavelmente devido ao androcentrismo e ao machismo, o homossexualismo masculino é muito mais malvisto socialmente do que o feminino. Creio que qualquer pai brasileiro se sentiria muito menos triste por ter uma filha homossexual do que um filho homossexual.
O movimento feminista e, dentro dele, o ecofeminismo (o galho que se tornou maior do que a árvore) tem chamado a atenção para muitas outras manifestações da linguagem preconceituosa. Para Adams (1991), por exemplo, que é uma ecofeminista vegetariana radical, "o ecofeminismo argumenta que há uma importante conexão entre a dominação da mulher e a dominação da natureza pelo homem. Tanto que", em sua opinião, "a terra é sempre considerada feminina", o que se poderia ver na hipótese de Gaia, de James Lovelock. Nesse caso, se inclui o consumo de carne pelos humanos. Se Adams fosse falante de português, veria logo o fato de os homens serem os dominadores em uma churrascada (uma orgia de carne) e de "comerem" não só carne, mas também mulheres. Por isso, Adams afirma que suprimimos o referente (seu referente ausente) a fim de não termos que pensar no assassinato de animais para comermos.
O racismo é outra atitude que se manifesta na língua com muita frequência. Expressões pejorativas para com as pessoas da raça negra são muito comuns. É o caso da expressão negro, quando não caga na entrada, caga na saída que, a despeito de felizmente estar caindo em desuso, ainda se ouve por aí. Uma outra é Fulano é inteligente; resposta: Ele pode ser inteligente pras negas dele. O cabelo do negro é ruim, o que implicaria que o do branco é "bom." Quando alguém tenta remediar a situação, ao ser pilhado usando expressões pejorativas como crioulo, a emenda fica pior do que o soneto, como ao se substituir "negro" por escurinho. O movimento negro hoje faz questão do nome "negro", sendo que "preto" seria o nome de uma cor. Por outro lado, a coisa está preta parece não conter racismo. Parece que essa expressão tem a ver com a escuridão, por oposição à claridade. A escuridão nos mete medo, independentemente de raças.
Outras etnias também são discriminadas. É o caso dos índios. No Brasil, fazer um programa de índio é o fazer-se algo sem sentido, que não vale a pena. Índio é do mato, opondo-se ao "branco", que é da cidade, logo, "civilizado", palavra que, por sinal, tem origem preconceituosa, pois remonta a civis do latim, que significa justamente cidade. Todas as designações etnocêntricas por definição vão na direção do racismo.
Uma manifestação de linguagem preconceituosa bastante sutil, porque subreptícia, é o crescimentismo, intimamente ligado a grandismo. Muitos autores têm apontado para o fato de que em nossa sociedade "grande é bonito", o que implica que pequeno não o é. Aí vem o desenvolvimentismo dos países do norte, por oposição ao atraso dos do sul. Talvez até mesmo a alta estatura dos nórdicos, por oposição aos baixinhos nativos e/ou subdesenvolvidos do sul, se enquadre nessa categoria. Para contrapor-se a tudo isso, Schumacher (1975) defendeu a ideia de que "pequeno é bonito", ou seja, small is beautiful.
Temos também o classismo, que talvez fosse melhor ser chamado de aulicismo, ou seja, hábitos e costumes dos áulicos, habitantes da corte. Eles se intitulavam corteses, sendo que o habitante da vila era o vilão ou, então, o morador do campo é uma pessoa rude, rústica, palavras que têm a mesma origem que "rural." Uma parte da população é a elite (o escol), oposta à ralé, à plebe ou ao populacho (a escória). Poderíamos aduzir ainda pagão, gentio e outros, do lado rural, tudo oposto à "polidez" dos áulicos. Modernamente, como não há mais corte, opõe-se o campo à cidade. Assim, os habitantes das cidades, os urbanitas (ou urbícolas) seriam os urbanos, que agiriam com urbanidade, por oposição ao comportamento dos rudes e rústicos habitantes da zona rural, os rurícolas. No Brasil, especificamente, termos como capiau e jeca são praticamente sinônimos de rude e rústico. Seriam pessoas que não têm delicadeza, que "não têm bons hábitos", "atrasadas." O termo matuto, por exemplo, remete a mato. O que acontece é justamente o contrário. O rurícola vive em contato direto com a natureza. Em contato direto com o sol, com a chuva, com o vento, com a terra, com as plantas, com os animais. Ele vive em relativa harmonia com todos esses elementos. Como consequência disso, tem uma linguagem direta para se referir a todos eles e a outros aspectos do mundo, sem subterfúgios.
No que tange a partes do corpo, o rurícola não tem os pudores e pruridos hipócritas dos urbícolas, chamando determinadas partes do corpo como bunda, cu e pinto. Atos fisiológicos como cagar, mijar e peidar são rotineiramente assim designados, sendo que os urbícolas, com seus falsos pudores, se refugiam em eufemismos, que seriam uma espécie de apelido para essas coisas e atos. Assim, para bunda usam bumbum; para cu, ânus; para pinto, pênis ou passarinho, entre outros, pegando carona na linguagem infantil ou na científica. Para cagar usa-se nas cidades fazer cocô; para mijar, fazer xixi; para peidar, soltar pum e assim por diante. É interessante ressaltar que, quando o rurícola usa palavras como essas, ele o faz sem nenhum riso nos lábios, sem nenhuma malícia. Afinal de contas, trata-se de atos rotineiros, que todo mundo normal pratica. Além do mais, tanto peidar quanto soltar pum referem-se à mesma coisa, da perspectiva semasiológica. Por outras palavras, o pum de um urbícola certamente não é menos fedorento do que o peido de um rurícola, sobretudo se levarmos em conta que o primeiro come muita coisa química, artificial, não orgânica.
É interessante notar que os atos praticados pela boca e outras partes do corpo normalmente não têm a mesma conotação pejorativa, pelo menos não no mesmo grau. Tanto que os urbanitas não criaram um eufemismo para arrotar nem para vomitar. Uma exceção seria suar, pois pinçaram o neologismo latino transpirar, também de valor eufêmico. Parece que a única secreção corporal que não é tida como "feia" é a lágrima. Ela representaria "emoções", não algo do corpo físico propriamente: as pessoas têm horror a tudo que tenha a ver com matéria. Eu ainda não consegui aventar uma hipótese para explicar tudo isso. De qualquer modo, os eufemismos abundam na linguagem urbana. Só para dar mais um exemplo: hoje ninguém mais é gordo, mas gordinho.
Os eufemismos urbanos podem até ser manifestação de uma maior diversidade nos meios expressionais da língua, mais uma alternativa para expressar a mesma coisa, o que, em princípio, significaria riqueza, diversidade. O problema é que, subjacente a essas expressões eufêmicas dos urbícolas, está uma grande hipocrisia, o medo de reconhecer o fato em si, o querer se distanciar dele. Essa ideia de distanciamento do fato, da coisa em si, na realidade nua e crua leva a uma supressão do referente, como disse Adams (1991), ao falar do referente ausente. Com isso, a linguagem se autonomiza em relação ao mundo, o que não é desejável de uma perspectiva ecolinguística mais ampla. Com uma linguagem sem conexão com o mundo, as elites arrogantes podem falar sem dizer nada, os políticos podem prometer o que quiserem e depois se desdizerem, ou dizerem que não disseram, ou o contrário. Tudo é válido. Não há um ponto de referência para se julgarem os discursos, uma vez que o referente está ausente.
A linguagem dos rurícolas é direta, não tem o subterfúgio do eufemismo infantil nem do científico (nem do social), talvez porque eles não tenham tempo para ficar "inventando modas", como parecem ter os urbanitas. É uma linguagem que não suprime o referente, encara-o de frente, enquanto que os urbanitas, via de regra, o omitem. Estes últimos falam entre si, conversam, como se não houvesse um mundo externo à linguagem, ao qual as palavras que usam se refeririam, pelo menos originariamente. Em inglês, por exemplo, usa-se o termo mutton, para carne de carneiro (sheep), e beef para carne de gado (ox, cow). Com isso, como disse Adams (1991), afastariam de si essa coisa desagradável de que estão comendo um animal que foi assassinado, restos de um cadáver.
Vejamos uma outra manifestação do preconceito linguístico, bastante eloquente. Uns tempos atrás, em uma universidade brasileira, um grupo de professores de português instalou uma felizmente efêmera "Clínica de Português", que portava o subtítulo "Tentando curar a linguagem do povo." Tratava-se de uma iniciativa que tinha boas intenções, embora o vulgo costume dizer que de boas intenções o inferno está cheio. O fato é que a intenção dos "clínicos da linguagem" era ensinar as pessoas a "aprimorar" sua expressão escrita, torná-la "melhor", isto é, fazê-la ficar mais em consonância com os ditames da gramática normativa. Em princípio nada haveria de mau em iniciativas como essa. O problema é a ideologia que está por trás dela. Como sabemos, só precisa ser curado algo que está doente. Portanto, se queriam "curar" a linguagem do povo, é porque a consideravam "doente", "deformada", "distorcida" em relação à "boa linguagem", aquela que os juízes do certo e do errado consideram boa.
A língua de uma comunidade é muito mais rica do que imaginam os caçadores de erros. Ela não se limita à variedade que chamam de "padrão", "standard", "culta" ou "literária", passada normativamente pela escola. Pelo contrário, o L que faz parte da ecologia fundamental da língua, apresenta uma grande variedade de manifestações. Como se pode ver nos manuais de sociolinguística, existem as variantes diacrônicas, as diastráticas, as diatópicas, as grupais, as antilínguas, as gírias, os jargões profissionais e assim por diante. O princípio ecológico da variedade se manifesta aí em toda a sua plenitude, a despeito do desejo dos juízes do certo e do errado de ver tudo engessado no molde normativista. O que é mais, todas essas variantes são dinâmicas, com exceção da que eles defendem, a variedade "padrão", que lutam para manter como sempre foi, com medo de uma possível desordem e uma consequente ausência de comunicação. Ora, a língua existe justamente para a comunicação entre os membros da comunidade. O dia em que ela perder essa função, desaparecerá, geralmente mediante a substituição por outra língua.
O parágrafo anterior levantou uma questão terminológica que ainda não recebeu um tratamento adequado dos estudiosos do assunto, pelo menos no meu modo de ver. As designações "dialeto/variedade padrão", "dialeto/variedade culto(a)" e equivalentes são todas preconceituosas. Nem mesmo "variedade literária" satisfaz, uma vez que se restringiria à escrita, sendo que ela pode se manifestar oralmente também, pelo menos em princípio. Talvez, a melhor maneira de designar essa variedade seja chamá-la dialeto estatal, ou língua estatal (para os estados multilíngues), como se vê na expressão alemã Staatssprache. Com isso fica clara a sua finalidade, que é a de ser a língua do estado.
Na verdade, no que tange à diversidade linguística, o que acontece é justamente o contrário do que pregam os caçadores de erros e os juízes do certo e do errado. Em vez de ser um empecilho à comunicação em âmbito maior, os dialetos representam uma adaptação da língua ao ambiente em que é falada. Se ele é multifacetado, também ela o será. Se o território em que é falada é muito grande, haverá necessariamente muitas variedades regionais, a fim de que ela se adeque às realidades de regiões distantes. Se em uma mesma região, uma grande cidade, por exemplo, houver diversos segmentos sociais diferentes, com interesses diferentes, a linguagem refletirá essas diferenças, como já havia sido notado por Marr (1923). É justamente do entrechoque e do embate dessas diversas variedades que advém a imensa riqueza da língua.
Aqui eu gostaria de salientar uma ideia que vai escandalizar os normativistas. Dado o fato de que a realidade, tanto a natural quanto a social, é dinâmica, está sempre evoluindo, também a língua evolui, a fim de continuar sendo veículo adequado de expressão da população que a formou e a usa (Coseriu, 1967; 1979). Se ela parasse no tempo como querem os normativistas reacionários, deixaria de ser o veículo ideal para expressar o mundo dessa população. Pois bem, é justamente do embate entre as diversas variedades, pelo surgimento de novos modos de encarar o mundo, de novidades tecnológicas e comportamentais, é que surgem as inovações na língua. As inovações que vêm das elites em geral são ilegítimas, pois essas elites têm os olhos voltados para os Estados Unidos e passam a ver o mundo pela ótica desse país. Daí os inúmeros americanismos no português brasileiro. Nem é preciso dar exemplos, pois eles abundam em todos os componentes da língua. As inovações que vêm espontaneamente das bases, do povo, são sempre legítimas, e frequentemente pegam, a despeito de os normativistas as verem quase sempre como "erros." Vejamos apenas um exemplo. A palavra "menor" é a forma comparativa de inferioridade do adjetivo "grande." Como ela passou a se aplicar à idade das pessoas, expressões como "ele é menor" ficou ambígua, pois poderia significar tanto "menor de idade" quanto "menor em estatura." Para desfazer a ambiguidade, o povo criou espontaneamente a expressão "de menor", com o que o significado "menor de idade" é expresso claramente como "ele é de menor." Mas, já vi muito normativista condenando essa expressão. Como o ex-presidente ditador militar João Batista Figueiredo, eles não apreciam muito o cheiro de povo.
Os eternos caçadores de erros se arvoram em juízes do certo e do errado e se consideram acima dos demais mortais. Tudo que alguém diz ou escreve diante deles é julgado como "certo" ou como "errado." De acordo com seu tacanho conceito de correção, está certo o que estiver dentro dos cânones artificiais e esclerosados do dialeto estatal. O que não estiver, estará errado, e ponto final. Infelizmente, esses juízes do certo e do errado fazem muito mais sucesso do que os cientistas da linguagem, aqueles que se dedicam a estudar a sua estrutura, o seu funcionamento e sua função social. Tanto que os vendedores de fórmulas de "bem dizer" e "bem escrever" ganham rios de dinheiro, e têm a agenda sempre cheia de convites para fazer conferências para plateias compostas de pessoas que estão à cata de mágicas para "escrever bem."
Esses compulsivos caçadores de erros na linguagem dos outros, em sua ânsia de julgar o que consideram certo e o que consideram errado, acabam se traindo e cometendo os mesmos "erros" que imputam aos outros. Alguns, mais medrosos de ser pilhados cometendo os "erros" que mostram na escrita dos outros, só redigem com frases curtas, do tipo sujeito-verbo-complemento. Evitam períodos mais longos, num estilo staccato dos mais chatos para o leitor. Em Couto (1993) esse assunto está discutido mais pormenorizadamente.
Alguém poderia argumentar que não seria possível as coisas serem de outra maneira, porque cada língua revela a visão de mundo de seus falantes. Toda linguagem é necessariamente antropocêntrica, uma vez que representa o mundo como nós o vemos. Do contrário, teríamos que ter linguagens "caninocêntricas", "felinocêntricas", "bovinocêntricas" e assim por diante. O problema é que os vícios contidos nas denominações frequentemente ficam velados. Por isso, de acordo com Fill (1993), é bom que sejam desvelados, a fim de que seus falantes fiquem conscientes do fato. O ideal, segundo ele, seria redenominar (umbenennen) todos os fatos pejorativizados brevemente comentados acima, entre diversos outros. Mas, se isso não é possível, pelo menos que estejamos conscientes de que são preconceituosos e ajamos em conformidade. A ecolinguística propugna pelo pequeno, pelo mais fraco, pelo desprezado, pelo discriminado. O grande, o forte e o privilegiado não precisam de defesa.
Não se trata de impor um "discurso político-linguisticamente correto." O objetivo dos ecolinguistas ao chamarem a atenção para toda e qualquer manifestação de linguagem preconceituosa não é censurar, mas conscientizar as pessoas sobre o peso de palavras que eventualmente podem ser ofensivas a determinados segmentos da sociedade. Isso porque, como seguidores dos princípios da ecologia, eles valorizam a diversidade, respeitam a diferença. Chamar a atenção para modos de falar que podem ofender pessoas ou grupos não é censurar, é reconhecer o direito à diferença, à diversidade. No sentido da pregação de Arne Naess, se é que se vai defender algum -ismo, que seja o biocentrismo. É colocar a vida no centro de tudo. Alguém é contra a vida?
Uma vez que nossa língua de certo modo reflete o mundo filtrado pela comunidade de falantes, o modo como falamos do mundo até certo ponto reflete o como agimos sobre ele. Em uma cultura (e língua) em que há expressões pejorativas contra determinado segmento social, a tendência é tratar mal os cidadãos a ele pertencentes. Por isso Alwin Fill nos instiga a redenominar todos as coisas e fenômenos que são designados pejorativamente. É preciso empregar novas metáforas e expressões idiomáticas criativamente para representar a natureza e nossas relações com o mundo natural. Uma planta que consideramos simplesmente como "mato" (praga, erva-daninha) geralmente tende a ser maltratada (exterminada) por nós. Tendemos a matar e/ou maltratar todo e qualquer animal que classificarmos como "nocivo", "feroz", "venenoso" (como as cobras).
Eu, particularmente, não acredito que apenas trocando a visão androcêntrica de mundo por uma visão ginocêntrica alteraria muita coisa em nossas agressões ao meio ambiente, como parece crer Adams (1991). Existem muitas mulheres assassinas, que cometem as mesmas barbaridades que os homens cometem assim que têm a chance de fazê-lo. Portanto, muito mais do que lutar contra o androcentrismo e o machismo, talvez o mais importante é defender a diversidade em geral, de acordo com a qual todo ser tem valor intrínseco, e como tal deve ser respeitado. Essa seria uma luta muito mais ampla do que apenas a da justa bandeira que desfraldam as feministas em geral e as ecofeministas em especial.
Referências
Adams, Carol. Ecofeminism and the eating of animal. Hypatia 6,1, pp. 125-145.
Bagno, Marcos. O preconceito linguistico. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
Carson, Rachel. Silent spring. Greenwich, Conn.: Fawcett Publications, 1962.
Coseriu, Eugeniu. Teoría del lenguaje y lingüística general. Madri: Gredos, 1967, 2a ed.
Couto, Hildo Honório do. 1993. O que é português brasileiro. S. Paulo: Editora Brasiliense (Coleção "Primeiros Passos", n. 164), 7ª ed.
_______. 1985. A propósito do certo e do errado em linguagem. Estudos lingüísticos (GEL) XI, pp. 89-98.
_______. 2005. Descrioulização e insegurança linguística no crioulo português da Guiné-Bissau. In: Endruschat, Annette & Axel Schönberger (orgs.) Portugiesische Kreolsprachen: Entstehung, Ausbau und Verwendung. Frankfurt/Main: Domus Editoria Europaea, pp. 83-105.
Fill, Alwin. Ökologie: Eine Einführung. Tübingen: Gunter Narr Verlag, 1993.
Haarmann, Harald. Ökolinguistik. In: Kontaktlinguistik. Berlim: Walter de Gruyter, 1996, pp. 842-852.
Marr, Nikolaus. Der japhetitische Kaukasus und das dritte ethnische Element im Bildungsprozess der mittelländischen Kultur. Berlin: Kohlhammer, 1923.
Mazel, David. American literary environmentalism as domestic Orientalism. In: Glotfelty, Cheryll & Harold Fromm (orgs.) The ecocriticism reader. Athens, Georgia: The University of Georgia Press, 1996, pp. 137-146.
Schumacher, Ernst. Small is beautiful. New York: Harper & Row, 1975.