terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

O componente proxêmico da linguagem


 O COMPONENTE PROXÊMICO DA LINGUAGEM1

Hildo Honório do Couto

Universidade de Brasília



1. Introdução1

Contrariamente ao que afirma a tradição idealista e metafísica desde Platão, passando pelo racionalismo cartesiano, até Chomsky e seguidores, partirei do ponto de vista segundo o qual linguagem é um meio de comunicação. Com isso parece ficar implícito que a linguagem é basicamente a língua. Devo esclarecer, no entanto, que considero como linguagem todo e qualquer meio de comunicação, contrariamente ao que se lê em (COUTO 1983: 68-73). Por outras palavras, hoje defendo a concepção segundo a qual todo e qualquer conjunto de signos que permitem a interação social é linguagem. Assim sendo, vejamos o que vem a ser  comunicação.

De um ponto de vista bastante geral, pode-se dizer que comunicação é o processo pelo qual um emissor (E) envia uma mensagem (M) a um receptor (R). Fica implícito que M será decodificada por R. Caso contrário, a comunicação não foi eficaz, não se realizou. Para que a M enviada por E a R seja eficaz, ou seja, para que R decodifique a informação contida em M, é necessário que E e R compartilhem o código ou linguagem, na qual ela foi formulada. Ora, a situação normal de comunhão de um código é a que se dá entre indivíduos pertencentes à mesma comunidade, mesmo quando um deles (ou ambos) tenha(m) emigrado para o contexto de outra comunidade. Trocado em miúdos, para se entender o processo de comunicação é imprescindível que se leve em conta o contexto em que ela se dá, ou seja, a comunidade a que pertencem os interlocutores. Com efeito, dois indivíduos só comungam do mesmo meio de comunicação se pertencem à mesma comunidade, mesmo que eventualmente um deles, ou os dois, se encontre(m) fora dela. Os indivíduos que não pertencem a ela só se comuicam com seus membros se adquirem seus hábitos de interação, se aprendem sua linguagem. Com isso, de certa maneira passam a fazer parte dela. Em síntese, a comunicação só se dá entre indivíduos que comungam os hábitos interacionais de uma comunidade.

Uma das conseqüências do que ficou dito acima é que, de um ponto de vista apenas sincrônico, comunidade (C) é um todo cujas partes componentes principais são (a) um agregado de pessoas que vivem e interagem em (b) um território e que, portanto, (c) têm interesses comuns. A presença de (a) e (b) é condição necessária, mas não suficiente, para a existência da comunidade. Com efeito, algumas pessoas podem se juntar em um espaço por razões meramente físicas, naturais. Um bom exemplo disso é o elevador, onde uma meia dúzia de pessoas se vêem juntas de modo inteiramente casual, sem que haja nenhum vínculo entre elas. Os indivíduos ficam ansiosos, olhando para os números luminosos que indicam o andar a que se chegou. Assim que podem, pulam fora, como se quisessem livrar-se de uma situação incômoda, pois a ausência de um vínculo, de algum interesse comum, isto é, de uma linguagem, torna a situação incômoda.

Um outro exemplo de aglomeração "em resposta a uma determinada condição ambiental" é dado por Thomas A. Sebeok. Trata-se dos carros que vão se aproximando um do outro ao chegarem ao perímetro urbano. Nesses casos temos uma mera agregação cinética. Um outro exemplo do mesmo autor é a agregação tropista, como no caso dos bichos-de-seda que "tendem a procurar as regiões de máxima umidade; uma vez localizadas tais áreas, para lá se vão eles e se agregam" (SEBEOK 1973: 17-18). Enfim, para que um agregado de indivíduos em determinado espaço constitua uma comunidade é necessário que os interesses comuns (c) incluam padrões de comportamento aceitos pelo grupo inteiro, o que não é necessariamente o caso desses dois tipos de agregação. Esses padrões são, ao fim e ao cabo, linguagem. Isso é o mesmo que dizer que os interesses comuns no caso da comunidade humana são essencialmente sociais, ao passo que os eventuais interesses comuns existentes na agregação cinética e na agregação tropista são detereminados por fatores físicos, naturais.

É bem verdade que muitas espécies de animais irracionais apresentam padrões gregários até mesmo superiores à agregação cinética e à tropista, como é o caso do acasalamento, da família e da manada (bando, rebanho, cardume, etc.) (cf. SEBEOK 1973: 18). Esses três últimos tipos de agregação já se aproximam bastante do que entendo aqui por comunidade. Ou seja, aqui os interesses comuns (c) não se restringem aos determinantes estritamente naturais. Pelo contrário, nesses tipos de agregação, já entra muito do cimento de uma comunidade humana: a socialidade. E aqui temos a palavra chave para qualificar a comunidade humana frente às agregações animais, ou seja, a vida social, rigidamente orientada por padrões de comportamento coletivamente aceitos. Um agrupamento de pessoas em um território constitui uma comunidade quando os indivíduos que o compõem estão unidos entre si por uma linguagem, isto é, padrões de comportamento.

A questão é que a linguagem (o conjunto dos padrões de comportamento) de uma comunidade é muito complexa. A maior parte de seus componentes está em (c), ou seja, nos interesses comuns. É o caso da língua (linguagem humana oral, inclusive suas traduções visuais, táteis, etc.), da paralinguagem (TRAGER 1964), da mímica, das linguagens visuais, etc2  Portanto, distingo linguagens (com minúscula) e Linguagem (com maiúscula), doravante L. Por L entendo o conjunto de todas as linguagens, ou códigos, que subjazem ao comportamento dos membros de uma comunidade. L é o conjunto de convenções que orientam o comportamento do indivíduo qua membro de uma comunidade. É tudo aquilo que a comunidade criou e/ou denominou em sua práxis diária de produção dos meios de subsistência. L é o que outros chamam de cultura. Eu mesmo chamei o conjunto de todas as linguagens de uma comunidade, isto é, tudo aquilo que em C tem significação e que portanto serve de meio de comunicação entre seus membros, de "macro-código cultural" (COUTO 1981). Portanto, sempre que eu usar o termo "Linguagem" (com maiúscula) ou L, entenda-se aquilo que em outros contextos se chama cultura.

Um pressuposto importante subjacente a tudo que se diz aqui é que há relações íntimas entre Linguagem e comunidade. Com efeito, pela definição de comunidade recém-vista, verifica-se que L faz parte de C. Daí se conclui que não existe C sem L nem L sem C. Do ponto de vista sincrônico, elas se pressupõem mutuamente. No entanto, diacronicamente C precede L, pois são os membros de C na práxis social da luta para produzir os meios de subsistência que produzem L. Enfim, tanto L em geral quanto as linguagens específicas, inclusive a língua, são produzidas pelo homem no processo de interação diária. A Linguagem é, portanto, um produto de trabalho passado, no sentido de ROSSI-LANDI (1975, 1985). No entanto, ela é também atividade, trabalho presente, ou seja, interação, comunicação. Além disso, a Linguagem apresenta também um aspecto de futuridade. É através dela que a comunidade como um todo e seus membros individualmente fazem projetos para o futuro.

Vê-se, portanto, que L e C estão inextricavelmente imbricadas uma na outra. Ao abstrairmos L a fim de estudá-la separadamente fazemo-lo apenas para efeitos operacionais. Deve ficar claro a todo momento da análise que tanto L como um todo quanto suas partes componentes são fenômenos sociais, comunitários, uma vez que L é parte de C, sobretudo sob a forma sociedade, que é a totalidade formada por (a) agregado de pessoas e (c) interesses comuns ou L.

Encarando C como foi feito acima, ou seja, como constituída de (a), (b) e (c), verifica-se que L deve fazer parte de (c), é um dos ou o mais importante interesse(s) de C. Mas, se é verdade que L e C se imbricam de modo inextricável como acabei de afirmar, pode-se conjeturar se não há alguma manifestação de L em (a) e (b) também. No momento, ignorarei a possível existência de um componente semiótico embutido em (a). Atenho-me a (b), ao território. Ou seja, pretendo explorar o uso que a comunidade faz dele como fenômeno de representação de valores sociais (significações sociais) e de comunicação. Em suma, pretendo explorar o uso social do espaço no contexto da comunidade. A disciplina que se ocupa do uso social do espaço é a proxêmica, por oposição à cinésica, que trata da comunicação pelos movimentos (cf. ECO 1974: 396-399)3.



2. O espaço social em duas comunidades        

Nesta seção eu vou analisar os aspectos proxêmicos da comunicação, isto é, o uso social do espaço em duas comunidades, a de uma família rural brasileira e a comunidade do quilombo dos Palmares. O objetivo é salientar a importância dos aspectos proxêmicos de L, ou seja, em que medida e em que sentido o espaço intermedia a interação social, como a comunidade se utiliza dele para se estruturar e para funcionar. Antes, porém, gostaria de salientar que o uso social do espaço não foi descoberto agora e muito menos é ele restrito ao homem. Pelo contrário, há muito tempo isso já era sabido pelos investigadores do comportamento animal, os etólogos. Segundo Thomas A. Sebeok, o uso que os animais fazem do espaço é conhecido pelo nome de territorialidade desde 1920 (SEBEOK 1973: 14)4.

Entremos, assim, na análise dos dados, começando pela família rural brasileira. Trata-se de uma família residente em uma fazendo do município de Patos de Minas (MG), a cerca de 10 quilômetros de Capelinha do Chumbo (hoje chamada Major Porto). Deixando de lado o ambiente construído, de que falarei mais abaixo em termos gerais, nota-se que os membros dessa família sentiram necessidade de nomear acidentes do seu ambiente natural que a um estranho pareceriam insignificantes5. No entanto, como constituem uma mini-comunidade, apresentam as características de toda C, aí incluída a necessidade de uma linguagem específica que não só a identifique frente às demais mini-comunidades da região mas também que sirva para orientar o comportamento de seus membros espacial e socialmente. Como sabemos, não há L sem C nem C sem L.

No centro da comunidade em questão está a casa com frente para o nascente, tendo do lado norte o curral, o paiol de milho e o chiqueiro. A noroeste fica o quintal. Isso quanto à parte do ambiente construído, da "arquitetura" local. No que tange ao ambiente natural temos, circundando a fazenda, a "Serra do Parmital" e o "Corgo da Capivarinha" (sul), "Capelinha do Chumbo" e o "Corgo das Batata" (norte), "Horizonte Alegre" - também chamado de "Tavares" ou "Os Tavar"  (leste) - e "Serra da Roxa" (oeste). No caminho que leva a Capelinha do Chumbo os membros da comunidade em questão nomeiam, primeiramente, a "Lagoa dos Miguel", em seguida a sede do "Jeromo Abacaxi" (Jerônimo Abacaxi), assim conhecido por vender essa fruta. Logo a seguir, passam pelo "Mato Seco", pela "Barriguda" (uma velha paineira), pelo "Morro de Pedra", pela "Cruizinha" (=cruzinha), pela "Catiara" (já na entrada de Capelinha do Chumbo e um verdadeiro bairro dela), pelo "Cimintero" (=cemitério). Finalmente, temos o centro de Capelinha do Chumbo.

Com exceção dos pontos do caminho que leva da fazenda a Capelinha do Chumbo, talvez se possa enquadrar tudo que foi mencionado acima no objeto da macro-toponímia. Com efeito, todos os acidentes nomeados são de conhecimento geral, quase oficial, servindo de baliza até mesmo para as autoridades do governo demarcarem distritos ou limites de fazendas. No entanto, a família em questão distingue aspectos do ambiente físico que não teriam a menor importância para os forâneos, para quem não é membro da família, mas que são de importância vital para ela, pois servem como pontos de referência. Para se identificarem como uma mini-comunidade dentro de uma  comunidade maior, os membros dessa família têm que ter uma L própria, específica que ao mesmo tempo oriente o comportamento de seus membros espacialmente.

 Além dos macro-topônimos recém-referidos, de domínio geral na região circundante da fazenda, há outros acidentes físicos do ambiente natural, desconhecidos dos que não residem na fazenda, que receberam um nome e aos quais eu chamei de micro-topônimos (COUTO 1983: 118). Assim, o "Ispigão" é um espigão situado em um ponto extremo da fazenda, a sudoeste. Sua importância está não só em ser ponto extremo, mas também no fato de que quando uma rês (boi ou vaca) ou "animal" (cavalo ou égua) vai para lá fica difícil encontrá-lo, pois é o último lugar a que se vai. A "Lagoa" fica dentro da fazenda e recebeu um nome por ser também um ponto extremo, do lado nordeste. É o lugar mais retirado da "casa". Nos fundos da casa passa um pequeno córrego que deságua em outro maior que vem "lá do Nadim", isto é, da fazenda do Nadim (apelido de Leonardo Miranda). Nenhum dos córregos tem nome. No entanto, quando os membros da família querem se referir a um deles dizem o "Nosso Corgo", ou "Nosso Corguinho", por oposição ao "Corgo do Nadim". O pedaço da fazenda situado no ângulo formado pelos dois córregos é também "Ispigão". Quando se deseja fazer distinção entre este e o espigão anterior, diz-se "Ispigão do Nadim" e "Ispigão do Quinca" (nome do fazendeiro vizinho desse lado da fazenda). Temos ainda o "Oi d'Água" (=Olho d'Água), a nascente de "Nosso Corgo". Aparentemente essa fonte não tem a menor importância, mesmo porque logo acima dela está um bosque imponente, muito mais chamativo. No entanto, o "Oi d'Água" é um lugar onde as crianças brincam, daí o fato de esse nome ser usado mais por elas. Além do "Corgo do Nadim" está a "Capuera", bosque imponente situado no caminho que leva ao "Josia" (Josias) e para o "Nego", dois fazendeiros vizinhos e parentes dos membros da família em questão. Note-se que o nome dos proprietários passou a designar também o espaço ocupado por eles e suas famílias, isto é, sua fazenda.

Na face leste da casa há umas árvores que também chamam a atenção dos membros da família do "Zé Artino" (ou "Zé do Artino"), isto é, José, filho do senhor Altino. Trata-se de dois ou três pés de "Binga", árvores grandiosas que cobrem o sol nascente e têm esse nome por produzirem uma semente cuja casca se assemelha a uma binga, isto é, isqueiro. Menos significativa parece ser uma pequena árvore sita ao lado das "Binga", ou seja, a "Arvinha". Certamente ela recebeu um nome por ser um lugar para brincar muito apreciado pelas crianças (cf. COUTO 1983: 118-120).

Como se viu, nada é gratuito. Todo micro-topônimo tem uma função no contexto da mini-comunidade, que é a orientação do comportamento, no caso orientação espacial, quase no sentido de rosa-dos-ventos. Sem os signos toponímicos mencionados seria impossível a existência do grupo como tal, não haveria a menor possibilidade de ele se identificar, de se localizar e de seus membros se orientarem no espaço. O  aspecto proxêmico, a territorialidade, é importante até mesmo nos agrupamentos de animais superiores. Que dizer de agrupamentos humanos fixos, e de comunidades!

Vejamos agora a comunidade do quilombo dos Palmares. Trata-se do mais famoso quilombo formado no Brasil, em toda sua história, sendo por isso mesmo o mais estudado e comentado. No entanto, tudo tem que se basear nos parcos relatos que os cronistas da época nos legaram. Pela composição demográfica (a), essa comunidade deve ter desenvolvido um pidgin e, ulteriormente, até mesmo um crioulo6.

Como não temos praticamente nenhuma referência à linguagem do quilombo dos Palmares, resta-nos investigar a comunidade do ponto de vista demográfico (a) e topográfico bem como sua "arquitetura" ou ambiente construído (b) que, de resto, também integram L, como já foi sugerido. Dadas as íntimas relações existentes entre L e C, talvez se possam tirar algumas ilações lingüísticas a partir de (a) e (b), o que não farei aqui (cf. COUTO 1993b). A composição demográfica de Palmares era a mais variada possível. Constituía-se basicamente de escravos fugidos do cativeiro, muitos de origem bantu, outros da costa da Guiné. Mas, havia também mulatos ou crioulos. É possível que houvesse até mesmo brancos, pois os palmarinos aprisionavam gente para ajudar a construir o quilombo. O fato é que podem ter constituído uma comunidade de 16 a 20 mil pessoas e talvez até mais. Essa comunidade existiu mais ou menos de 1630 a 1697.

Os documentos da época descrevem a composição demográfica, a topografia, a "arquitetura", a economia e até mesmo alguns hábitos dos habitantes de Palmares. No que tange à língua, no entanto, são inteiramente silentes. Até parece que a questão era tabu, pois tinham medo de que o quilombo se tornasse um estado negro independente à semelhança do Haiti. Segundo Nina Rodrigues, no período holandês o componente proxêmico da comunidade compreendia uma rua de uma braça de largura e meia milha de comprimento, no sentido leste-oeste. Havia 220 casas, com uma igreja no centro, 4 forjas e uma grande casa de conselho. Para comunicação com o exterior, havia 4 portas, uma vez que o território era cercado com estrepes, confinando com um alagadiço de um lado e árvores derrubadas do outro lado.

O que acabamos de ver era apenas o Palmares Grande. Havia outros, distribuídos por 60 léguas ao longo da terra das Barrigas, na parte superior do S. Francisco, quase de norte a sul, até o sertão de Santo Agostinho. O fato é que havia o "mocambo do Zambi", a 16 léguas de Porto Calvo; ao norte deste, a 5 léguas, ficava Arutirene; a leste destes ficavam dois mocambos chamados das Tabocas; a 14 léguas deles, o de Dambruganga, ao norte do qual ficava a "cerca" da Sucupira. Mais ao norte ficava a "cerca real" chamada Macaco e o mocambo Osengá, a "cerca" de Serinhaém, a do Amaro, além do Palmares de Antalaquituxe,  irmão de Zambi.

No que tange à organização social e política, eram governados por um rei e seus auxiliares. As questões comuns eram decididas na "Casa do Conselho". Quanto à economia, praticavam uma agricultura rudimentar mesmo para os padrões da época. Além disso, trocavam seus produtos por artigos industriais, armas e munições com a vizinhança. O objetivo maior da comunidade palmarina era, além da própria subsistência, a defesa da própria liberdade contra as autoridades portuguesas que queriam recapturar todos seus membros e reintegrá-los na escravidão. Por isso havia punição com pena de morte a quem traísse essa causa, pena que se aplicava também ao homicídio, ao adultério e ao roubo. Enfim, a comunidade dos Palmares teve tempo para se consolidar, 67 anos, tendo visto uma seqüência de três gerações, tempo mais do que suficiente para a formação de um pidgin e seu desenvolvimento em um crioulo. No entanto, como não existe quase nada a respeito de como os palmarinos se comunicavam entre si, temos que nos contentar com os aspectos proxêmicos e outros que os cronistas nos legaram.

Se forem verdadeiras as relações entre L e C comentadas acima, não resta dúvida de que em Palmares deve ter existido uma língua própria, diferente das línguas africanas e do português, ou seja, uma língua mista, um crioulo. Os parcos itens lexicais (antropônimos, topônimos e alguns nomes comuns) de que dispomos levam a isso. Eis alguns antropônimos: "Ganga Zumba" (=senhor grande), "Zambi" (=deus da guerra), "Osenga", "Andalaquituxe" (irmão de Zambi), "Zona" (irmão do rei), "Lucrécia" ("uma negra coxa"), "Ganga Muisa" ("mestre de campo da gente de Angola"), "Matias Dambi", "Amaro", etc. Quanto aos topônimos, temos os já mencionados acima, além de outros de que temos registros. Há também registro de alguns parcos substantivos comuns, como "mondé" (=armadilha para caça"), "cerca" (mocambo, subcomunidade fortificada dentro da comunidade de Palmares), "roça" (local onde se cultivam plantas comestíveis) e "mocambo" (cf. "cerca"), "pacova", "pindoba" e "jacu". Em suma, é muito pouca coisa para se reconstruir a língua usada em Palmares. Por isso, as informações proxêmicas, sobre o uso social do espaço são de grande auxílio para a investigação da língua deste comunidade. Elas nos dizem que as bases para a língua existiam. A questão que se põe é: Como era essa língua? Em COUTO (1993b) eu tentei uma reconstrução precária dela, de que as observações supra são uma amostra. Muita coisa fica ainda por fazer.

Embora meu objetivo neste ensaio seja explorar o componente proxêmico de L, valeria a pena salientar que outros aspectos de C também são importantes do seu (L) ponto de vista. A antroponímia é uma delas. Partindo dos componentes de C vistos acima, ela se situa em (a), a população. Com efeito, os nomes dos membros de C são fundamentais para sua identificação, tanto por si mesma quanto por forâneos. Outrossim, as pessoas do discurso também parecem pertencer à parte de L localizada em (a) pois, como sabemos, elas designam "a pessoa que fala" (eu) e a "pessoa com quem se fala" (tu). Mas, sobre isso não temos nada de Palmares, embora o assunto em si mereça uma investigação específica e aprofundada. 



3. Espaço e linguagem

Pelo que vimos até aqui deve ter ficado bastante claro o quanto o espaço é importante para a linguagem. Com efeito, vimos que ele é um dos pré-requisitos para a existência de uma comunidade (b), sendo os outros dois a população (a) e os interesses comuns (c). Vimos também que L se situa em (c), ou seja, os interesses comuns, embora se manifeste também em (a) e (b). Após a análise dos aspectos proxêmicos de duas comunidades concretas, parece ter ficado patente que o espaço é parte indissociável de L, sobretudo se entendermos L como o conjunto universo de todas as linguagens ou códigos produzidos e usados por essa comunidade (cf. COUTO 1981). Toda comunidade tem que ter uma referência territorial. Mesmo os povos que passaram por uma diáspora sempre se lembram da terra original, como os hebreus. Os únicos que talvez não se lembrem mais de seu território original sejam os ciganos. Entretanto, hoje sabemos que provêm de uma região do centro-norte da India. O território é, portanto, não apenas a base física sobre que se assenta a comunidade. Pelo contrário, várias de suas manifestações passam a ter valor simbólico também, ou seja, sígnico, comunicativo, que permite a interação entre os membros da comunidade.

Dado o valor que o espaço tem para C e, conseqüentemente, para L, gostaria de aprofundar um pouco mais as relações que ele mantém com L, inclusive com a língua, diante do que já vimos até aqui. Falando dos aspectos étnicos de C Joshua Fishman afirma que "entre os componentes da etnicidade experienciada que mais revelam a tensão existente entre as dimensões da paternidade e do patrimônio estão a língua e o território. Ambos são geralmente interpretados como dados por Deus". Logo em seguida afirma o autor que existem "íntimas relações entre terra e língua entre os iroqueses" (FISHMAN 1977: 48)7. Aliás, para os estudiosos da etnicidade, o espaço é de importância fundamental, como se pode ver também em WILLIAMS (1979), freqüentemente sob o rótulo de ecologia.

Antes de mais nada é necessário distinguir, no aspecto espacial de uma comunidade, entre ambiente natural e ambiente social, conforme a distinção seguida por SAPIR (1969). O primeiro é o próprio território sobre o qual a comunidade se assenta, inclusive suas adjacências, com todos os seus acidentes e manifestações. Ainda de acordo com SAPIR (1969), nem todos os acidentes e seres encontráveis no ambiente natural de uma comunidade recebem uma designação, mas apenas aqueles que representam algum tipo de interesse (tanto positivo quanto negativo) para sua população, o que vem reforçar a tese de que (a) faz parte de L. Com efeito, apenas aqueles acidentes e seres do ambiente físico que medeiam a interação dos membros de C recebem um nome, o que de certo modo é até tautológico. Como já vimos, alguns dos acidentes são estudados pela toponímia, ao passo que outros são estudados pela zoonímia, a fitonímia, a antroponímia, etc.

O ambiente social, por seu turno, é tudo que os membros da comunidade construíram, é a parte artificial de (a). O semioticista norte-americano Donald Preziosi propôs as expressões "ambiente construído", "estrutura ambiental", "forma construída" e "arquitetura" para designá-lo. Esse autor defende a tese de que o ambiente construído de uma comunidade está sujeito aos mesmos princípios articuladores que a língua, uma vez que os dois fazem parte do mesmo processo cognitivo dos indivíduos que constituem a comunidade em questão (PREZIOSI 1976). Umberto Eco também fala em "arquitetura", embora em um sentido mais próximo do que se atribui tradicionalmente a essa palavra. De qualquer forma, não se distancia demasiadamente do sentido atribuído a ela por Preziosi (ECO 1974). Como se vê, o caráter de linguagem desse componente de (a) é inegável, pois ele resulta do trabalho, da intervenção dos membros de C no ambiente natural. Trata-se, portanto, de fenômenos de natureza cultural. E cultura é linguagem, como já vimos.

Como deve ter ficado implícito quando falei do ambiente da família mineira e da comunidade de Palmares, não é só o ambiente construído que interessa à caracterização proxêmica de C. Aspectos do ambiente natural também podem adquirir valor semiótico. Para dar apenas um exemplo, relembremos o "Oi d'Água". Trata-se de uma aparentemente insignificante fonte que dá início ao "Nosso Corguinho". No entanto, para as crianças da mini-comunidade da fazenda mineira em tela, ela tem não apenas valor de uso (suprimento de água potável) mas também o valor de troca social de ser um ponto de encontro para brincadeiras. Conseqüentemente, é um ponto de referência para a interação infantil, é um dos meios de as crianças se comunicarem. O mesmo se poderia dizer de todos os outros acidentes nomeados pelos membros da comunidade (cf. COUTO 1983: 118-120) para mais detalhes!).

No que tange ao ambiente construído, ele é por definição semiótico, social, portanto, parte de L. No caso da mini-comunidade da família mineira, mencionei acima a "casa", o "curral", o "chiqueiro", o "paiol" e o "quintal". Poderia acrescentar o "terreiro da sala", o "terreiro da cozinha", a "sala", a "cozinha", os "quartos", etc. Por fim, em cada um dos cômodos da casa há a mobília, espacialmente disposta. Sua disposição não é nada aleatória: ela existe em função da interação entre os membros da família. A disposição dos móveis e outros objetos existe para a comunicação deles entre si. Por exemplo, até a mesa de refeições tem uma posição costumeiramente tomada pelo pai, outra pela mãe. A dos filhos pode variar muito, embora mesmo ela tenda a se fixar. Freqüentemente isso reflete a hierarquia de poder no seio da família.

O mesmo que foi dito até aqui sobre a mini-comunidade mineira poderia ser dito de Palmares, embora nesse caso tenhamos mais referências sobre o ambiente construído do que sobre o ambiente natural. Os nomes de acidentes que chegaram até nós são bastante escassos. Não obstante isso, os poucos cujos nomes os cronistas da época nos legaram (como o "rio Cachingi") têm função semelhante à função dos acidentes da mini-comunidade, não sendo necessário entrar em detalhes sobre eles.



4. Conclusão

Em conclusão, podemos afirmar que as relações entre o espaço e L de determinada comunidade se manifestam de diversas maneiras. Em primeiro lugar, temos o ambiente construído que, por si só já é fenômeno de comunicação. A disposição espacial dos objetos, a localização de determinada parte das construções, dos móveis, enfim, nada está em determinado lugar ou em determinada disposição casualmente. À mesa, por exemplo, a mulher ocupa a cadeira mais próxima do fogão de lenha, localmente chamado de "fornaia" (fornalha), porque tem que servir a família. O pai ocupa a cabeceira por ser o pater familias. As posições restantes são distribuídas pelos filhos e empregados ou agregados, quando os há.



Em segundo lugar, o ambiente natural - que existe independentemente dos indivíduos que compõem a população da comunidade - pode assumir funções de referência, entre outras. Por exemplo, a "Arvinha" é um lugar bastante apreciado pelas crianças para brincar. Além do mais, é lá que um menino das redondezas aparece e chama por elas. Mas, a relação entre os acidentes naturais e L não se restringe a isso. No caso específico da língua, eles recebem uma denominação por representarem algum tipo de interesse, como disse SAPIR (1969), com o que enriquecem o léxico da língua da comunidade. O primeiro item lexical toponímico que certamente surge ao emergir uma comunidade é o nome da própria comunidade, como "Quilombo dos Palmares" e "Fazenda do Zé do Artino", para ater-me apenas aos dois exemplos analisados acima. A seguir, vêm nomes mais específicos, tais como as subdivisões de (b). É o que ocorre com toda a micro-toponímia vista acima. Aliás, a maioria dos objetos do ambiente construído   também recebem nome, como "casa", "paiol", "fornaia", etc.

Em terceiro lugar, ainda no que tange ao léxico da língua, há uma classe de palavras que são eminentemente proxêmicas. Trata-se dos dêiticos espaciais ("aqui", "aí", "ali", "lá", "acolá", "além", etc.), embora haja-os também temporais ("agora", "ontem", etc.) e modais ou nocionais ("assim", "como", etc.).

Por último, gostaria de salientar mais uma vez que Umberto Eco incluiu na linguagem proxêmica a arquitetura, no sentido de paisagem urbana, de urbanismo (ECO 1974: 235-240). Eu acrescentei a toponímia, no caso a micro-toponímia (COUTO 1983: 118-120), a zoonímia, a fitonímia, a hidronímia e a antroponímia, além dos dêiticos espaciais, entre outras. O fato é que em C não se pode desvincular L do espaço, do território. Por um lado, Linguagem e comunidade se relacionam como parte e todo. Por outro lado, comunidade se relaciona com território e população, também de todo para partes. Além disso, linguagem se vincula a território e população de um modo que parece de parte para parte de um mesmo todo. Conclui-se, portanto, que, em uma comunidade, tudo se relaciona, de um modo ou de outro, e que L e C estão inextricavelmente ligados entre si. A tal ponto que até a parte mais estática e natural de C, o território, também pode funcionar como linguagem, ter função semiótica, como disse Donald Preziosi. No entanto, devo reiterar o que disse na introdução, ou seja, que todas as idéias apresentadas aqui só puderam ser percebidas porque têm a apoiá-las a tese de que a língua em especial e a Linguagem em geral são primordialmente um instrumento de comunicação e só secundariamente um meio de expressão do pensamento e das outras funções que JAKOBSON (1969) discutiu.



Notas

1. Este ensaio emergiu de um amplo projeto que venho desenvolvendo desde 1988 sobre as relações entre linguagem e comunidade, sobretudo na costa ocidental africana. O objetivo é tentar descobrir algum indício que permita recuperar alguma coisa do crioulo português que aí se formou ao longo dos séculos XV, XVI e XVII (cf. COUTO 1989, 1990, 1992, 1993 e no prelo). Como se verá, o ensaio combina semiótica (COUTO 1983) e crioulística.

2. Para uma lista bastante ampla das linguagens que podem compor a L de uma comunidade, cf. ECO (1974: 392-408). Cf. também BARTHES (1971) e LEVI-STRAUSS (1970).

3. RECTOR & TRINTA (1965), além de serem um amplo apanhado da mímica brasileira, também definem os conceitos de "proxêmica" (p. 58) e "cinésica" (p. 56-58), dentre outras linguagens.

4. Thomas A. Sebeok vem estudando o comportamento animal, relacionado com o comportamento humano, através de uma disciplina cujo nome foi cunhado por ele como zoo-semiótica. Como se vê, a zoo-semiótica é o equivalente moderno da etologia (SEBEOK 1975, 1978, ECO 1974: 235-240 e RECTOR & TRINTA 1985: 50-63).

5. Em COUTO (1983: 118) chamei isso de micro-toponímia.

6. Para os conceitos de "pidgin" e "crioulo", cf. TARALLO & ALKMIN (1987) e COUTO (1996).

7. Sobre linguagem e território entre os iroqueses, cf. também ENGELS (1984: 100-101).



Referências

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[Este texto foi escrito há mais de 20 anos atrás – estamos em 2020 – mas acho que vale a pena colocá-lo à disposição de possíveis interessados devido à ênfase que dá ao papel do espaço na existência e funcionamento da linguagem]