A
fim de comprovar mais uma vez o holismo praticado pela linguística ecossistêmica
apresentada em postagens anteriores, vou tentar mostrar como se pode fazer
análise do discurso ecologicamente, vale dizer, vou propor a análise do
discurso ecológica (ADE). Por ser parte da linguística ecossistêmica, um
nome alternativo para ela é linguística ecossistêmica crítica (LEC), por
sugestão tanto da ‘análise do discurso crítica’ quanto da ‘ecolinguística
crítica’. Eu não encontrei nenhuma publicação em português em que a expressão
‘análise do discurso ecológica’ tivesse sido usada. O máximo que vi foi
‘análise de discurso ecológico’, estudo que pode ser feito de qualquer
perspectiva, inclusive da filosófica. Em uma breve pesquisa na internet
constatei que a expressão ecological discourse analysis já foi usada
pelo menos por Michael Zukosky, da Temple University, no contexto de seus
estudos em antropologia linguística, ecologia política e etnografia da
tecnologia e da ciência. Mas, ele quis dizer ‘analysis of ecological
discourse’, ou seja, ‘análise de discurso ecológico’, análise que tem por
objetivo os discursos ambientalistas, coisa que pode ser feita de diversas
perspectivas, sobretudo da da análise do discurso tradicional. Encontrei a
expressão também em francês (analyse du discours écologique), espanhol (análisis
del discurso ecológica) e alemão (ökologische Diskursanalyse), mas
apenas como citação. Não me deparei com nenhum ensaio sobre o assunto. O fato é
que muito provavelmente esta seja a primeira vez que se propõe uma análise do
discurso que erija seu arcabouço epistemológico no seio da ecologia. No que
segue, usarei preferencialmente a expressão ‘análise do discurso ecológica’ e
respectiva sigla, ADE, mas, eventualmente poderá aparecer também a designação
alternativa ‘linguística ecossistêmica crítica’ e respectiva sigla, LEC, e até
a sigla composta ADE/LEC.
As
primeiras reflexões sobre linguística ecossistêmica crítica foram feitas
em Couto (2013), tendo por base os conceitos da ecologia geral e os que já
vinham sendo introduzidos na linguística ecossistêmica. Com efeito, tem sido
dito em diversas ocasiões que a linguística ecossistêmica abriga também estudos
de ecolinguística crítica, linguística ambiental e/ou linguística ecocrítica,
uma vez que leva em conta tando a endoecologia quanto a exoecologia da língua.
Sua abordagem é holística. Enfim, contrariamente à esmagadora maioria dos
ecolinguistas, esta versão da disciplina leva o conceito de abrangência,
holismo e multidisciplinaridade a suas últimas consequências. A linguística
ecossistêmica estuda os fenômenos da linguagem sob qualquer forma pela qual
possam aparecer.
Diante
do que acaba de ser dito, é preciso mostrar como e porque eu tenho certeza de
que na ecologia geral e nas suas subdivisões filosófica e sociológica, entre
outras, temos grande parte dos conceitos (se não todos) que se fazem
necessários para analisar discursos. Comecemos do conceito ecológico mais
abrangente, o de ecossistema, que é o todo formado por um população de
organismos e suas interações com o meio e entre si. É em seu interior que se
desenrola todo o drama que constitui a base de minha argumentação. Todos os
demais conceitos emergem de seu interior, o que já justificaria o nome
'linguística ecossistêmica'. Sabemos que ele é encarado como um todo, motivo
pelo qual o holismo é o segundo conceito mais abrangente.
Ecologicamente, o objeto de estudo deve ser
surpreendido em sua totalidade, uma vez que em seu interior nada está isolado.
Quando nos atemos a apenas uma faceta dele, facilmente podemos cair na
parcialidade, parente próxima do partidarismo e do sectarismo. No interior do
todo do ecossistema, o que temos é uma diversidade de seres e fenômenos, entre os quais se dão inúmeras inter-relações. Aliás, estas últimas são definidoras do ecossistema, como
nos diz qualquer manual de introdução à Ecologia. Não é necessário
recorrer a nenhuma ideologia extraecológica (religiosa, marxista, política,
partidária, feminista etc.) para se praticar ADE. A versão da ecolinguística
chamada linguística ecossistêmica já encontra, na própria fonte de que emana,
tudo de que precisa para erigir seu arcabouço epistemológico, assim como todos
os recursos heurísticos para se avaliar criticamente todo e qualquer fenômeno linguístico,
aí inclusas as análises ecológicas de qualquer tipo de texto, ou seja, não só
de textos ambientalistas. Essa abordagem implica a assunção de uma ideologia
ecológica, ou ideologia da vida, se é que vamos falar em ideologia.
Ela se apoia nas ideias da Ecologia Profunda, que, como disse seu criador, o
filósofo norueguês Arne Naess, não é apenas descritiva e crítica, mas também prescritiva.
Ela luta pelos seres vivos de todas as espécies, criticando quem vai contra a
defesa da vida na face da terra. Seu ponto de honra é a defesa intransigente da
vida. Ela se posiciona contra tudo que vai à vida, em todas as suas formas, e,
consequentemente, contra tudo que pode trazer sofrimento. Porém, sempre
pacificamente, sem violência, como fazia Mahatma Gandhi, uma das fontes de
inspiração da Ecologia Profunda. Afinal, para falar sério não é necessário
falar de cara feia.
No
caso dos humanos, o sofrimento pode ser físico (natural), mental ou social.
Sobre o sofrimento físico não é necessário falar, pois qualquer ato que
o provoque salta à visa, não é necessário fazer grandes análises para se chegar
à conclusão de que um ato de pedofilia traz sofrimento ao (à) menor de que é
vítima, para não falar em violências que causam ferimentos. Os assassinatos
cruéis causam o maior tipo de sofrimento que se possa imaginar, a morte.
Sofrimento mental pode ser causado pelo assédio moral de um superior ao
inferior no ambiente de trabalho, por xingamentos, pelas agressões verbais de
um marido bêbado e/ou violento à mulher e/ou aos filhos. Sofrimento social
é, por exemplo, expor alguém ao ridículo. É muito importante, porém,
lembrarmo-nos de que não são só os humanos que podem ser submetidos ao
sofrimento. Os demais animais também. No prefácio a Couto (2007), vemos um
relato sobre sofrimento infligido a animais em fazendas do interior. Mas, não
são só os animais domésticos que não devem ser submetidos a situações que
causam sofrimento. Os demais também. A caça e a pesca lúdicas estão nesse caso.
Quando o rei da Espanha foi caçar (matar) elefantes, o objetivo era a
“diversão” do monarca. O sofrimento dos elefantes não era posto em questão,
como se pode ver muito bem analisado em Ramos (2013).
Um
exemplo interessante de situação que provoca sofrimento em todos os sentidos
(físico, mental, social) é a situação da mulher em alguns países muçulmanos
radicais. Como sabemos, ela tem muito menos direitos do que o homem, e muito
mais obrigações do que ele. Caso ela não obedeça, pode ser exposta à execração
pública, ser apedrejada e até executada de maneira que para nós parece cruel e
perversa. Alguns críticos ocidentais, inclusive alguns antropólogos e
sociólogos, alegam que isso faz parte da cultura muçulmana, aceita pelas
próprias mulheres muçulmanas. No entanto, lembra Arne Naess, nesses próprios
países existe pelo menos uma pequena minoria que é contra esse tipo de
comportamento em relação à mulher. É essa minoria que deve receber nosso apoio
porque ela luta contra o sofrimento das mulheres em questão. Deve ficar bem
claro que, para a ADE, essa defesa não é necessariamente uma atitude feminista.
É muito mais do que isso. É luta contra atos que causam sofrimento a um ser
humano, que, antes de o ser é um ser vivo, que sofre. O que é mais, por ser um
ser vivo social, sofre não só fisicamente, mas também mental e socialmente.
Para a linguística ecossistêmica, que segue a Ecologia Profunda, o feminismo é
importante, mas, se for radicalizado, torna-se parcial, partidário, a ponto de
ficar incondicionalmente contra o homem, atitude inteiramente equivocada. Em
casos extremos, essa ideologia pode levar a considerar o homem em geral como um
antagonista, um inimigo, não como um ser humano que existe para ser aliado e
parceiro da mulher. Já ouvimos falar de um boato segundo o qual, na época do
auge do radicalismo feminista, um grupo de mulheres da Holanda tinha por
objetivo sequestrar homens, “usá-los” e depois matá-los. Nem é preciso dizer
que se trata de uma atitude fanaticamente radical, fundamentalista, que vai
frontalmente contra a ideologia ecológica.
Vejamos
alguns temas, entre inúmeros outros, a que a ADE pode se dedicar
preferencialmente, bem como alguns conceitos ecológicos que podem ser
apropriados por ela. Em Fill (1993) já encontramos sugestões de uma série de
assuntos que podem (e devem) ser estudados por uma análise do discurso
ecológica, mesmo que avant la lettre. Em primeiro lugar, temos o antropocentrismo,
que tem levado os humanos a se acharem no direito de devastar tudo em prol do
próprio bem-estar. Em segundo lugar, vem a questão das línguas minoritárias
em contraposição às línguas dominantes que ameaçam sua existência. Da
perspectiva da ADE, devemos lutar pela sobrevivência das primeiras porque sua
extinção implica a descaracterização da identidade de seus falantes, que é o
mais importante, o que os faz sofrer. Isso leva a outro tema muito importante,
que é o culto do desenvolvimentismo. Desenvolver é procurar crescer, ir
de um estado “menor” para outro “maior”, o que implica que o grande é melhor do
que o pequeno. Na cultura ocidental, os dois conceitos se opõem, é um ou o
outro. Na oriental, como no taoísmo (Couto, 2012: 23-47), e na ecologia
profunda, eles são complementares. Vejamos o que está dito em um poema de Ralph
Waldo Emerson (1803-1882), em uma disputa entre a montanha e o esquilo. Este
disse àquela: Se eu não sou tão grande como você / Você não é tão pequena
como eu. Vale dizer, o grande não é necessariamente melhor do que o
pequeno. Pelo contrário, o grande precisa do pequeno para se afirmar como tal.
Em
Couto (2007: 347-356), há uma longa lista de atitudes preconceituosas que
causam sofrimento no público alvo. A primeira é o já mencionado antropocentrismo,
que consiste em colocar os humanos no centro do universo, tudo mais existindo
apenas parar servi-los. Ele pode se mostrar no que tange à natureza não viva,
como ao dizermos que um dia ensolarado é bom tempo, e, se chove, mau
tempo. Em se tratando de natureza vegetal, consideramos erva daninha
ou mato as plantas que não nos são úteis, mas teimam em nascer junto com
as plantações, e assim por diante.
A segunda é o etnocentrismo, que consiste em considerar o que
existe em nossa cultura melhor do que o que existe na dos outros, mas não na
nossa. O androcentrismo seria uma terceira manifestação da linguagem
preconceituosa, uma vez que traz sofrimento à mulher. Algumas de suas variantes
recebem o nome de machismo, sexismo e outros. Como se vê, a justa
luta das feministas se enquadra aqui também. Ela está no contexto mais amplo da
igualdade de direitos e deveres dos seres humanos, independentemente de sexo.
Uma quarta seria o classismo ou aulicismo, que consiste em
considerar a linguagem das elites urbanas como melhor do que a dos habitantes
da zona rural. Tanto que desde os primórdios da língua portuguesa, os corteses
eram os habitantes da corte, ao passo que os da vila eram os vilões.
Tudo que se refere à vida rural está associado a rude ou rústico,
palavras que têm a mesma origem. É o caso de populacho, plebe, pagão, gentio
etc., por oposição à elite, ou escol. Os habitantes da cidade
agiriam com urbanidade, teriam civilidade (de civis =
cidade em latim).
Nesse
contexto, poderíamos mencionar o fenômeno conhecido entre os sociolinguistas
como hipercorreção. De tanto ouvir dos habitantes da zona urbana que praça
e carça são expressões “erradas” e que o “correto” é placa e calça,
respectivamente, os habitantes da zona rural acabam se atrapalhando e passam a
substituir todos os “r” que ocorrem nessas posições por “l”, produzindo formas
que os linguistas têm chamado de “hipercorretas”, tais como “Cleusa”
(historicamente), “malmita”, “galfo” etc. Como lhe dizem que veio e faia
devem ser substituídos por velho e falha, respectivamente,
colocam o “lh” mesmo onde há “i” até mesmo no português estatal (padrão), como
“melha” por “meia”, “pilhor” por “pior” etc. Ora, isso é resultado de atitudes
discriminatórias contra o modo de falar dos habitantes da zona rural, e toda
discriminação produz sofrimento social, uma vez que ridiculariza o
discriminado.
Ainda
no caso da linguagem rural, em que se diz nóis vai trabaiá, considerá-la
como errada não é uma atitude ecologicamente correta. Na verdade, não se trata
de linguagem “errada” nem de uma “deformação” da “boa” linguagem do português
estatal (padrão). Pelo contrário, é a linguagem rural que é concreta, real,
existe efetivamente como meio de comunicação entre os habitantes das diversas
comunidades rurais. É a linguagem
estatal que é uma abstração feita a partir das diversas variedades linguísticas
que constituem o que chamamos de língua portuguesa como um todo. Assim se
poderia dizer que ela não está presente em atos de interação concretos que se
dão entre membros de comunidades de fala concretas. Em suma, a linguagem rural
e a da periferia das cidades, que é uma continuação dela, é pura e simplesmente
uma manifestação da diversidade dialetal existente no seio do ecossistema
linguístico brasileiro. Diversidade significa riqueza, como vemos na ecologia
geral.
Passando
à consideração de alguns conceitos ecológicos que podem (e devem) ser usados na
análise de textos, começamos justamente pelo de diversidade.
Sua aceitação implica uma atitude de tolerância para com o outro, sobretudo
quando é diferente. A não aceitação implica intolerância, o que pode conduzir à
agressividade e à violência, sobretudo contra as minorias de todos os tipos.
Sua aceitação pressupõe uma política de cooperação e harmonia, conceito que já
está previsto na própria ecologia biológica, no caso, nas relações harmônicas,
que podem se dar não só intraespecífica, mas também interespecificamente. No
primeiro caso, temos as relações entre os seres humanos; no segundo, entre eles
e seres de outras espécies de animais. O contrário seria a subordinação dos
mais fracos aos mais fortes e a consequente imposição da vontade dos segundos
sobre os primeiros. Como se vê, aqui entra a questão do poder. Isso pode levar
ao fundamentalismo que, como sabemos, frequentemente chega até à violência. Por
isso, a Ecologia Profunda que nós sigo recomenda uma atitude à la Gandhi, isto
é, firme, porém, não violenta.
Intimamente
associada à diversidade temos a questão das interações (inter-relações,
relações). No interior do ecossistema, nada está isolado, tudo está de alguma
forma relacionado a tudo, direta ou indiretamente. Havendo uma diversidade de
seres e inter-relações, pode-se dizer do próprio ecossistema que ele é uma
cadeia ou teia de inter-relações que se dão entre organismos, entre organismos
e meio, e assim por diante. Haverá tanto mais relações quanto mais diversidade
de organismos e de meio houver no ecossistema, de modo que os dois conceitos
estão intimamente inter-relacionados. Aí temos mais um tipo de inter-relação.
As relações estão intimamente associadas à harmonia do todo, uma vez que é em
seu interior que elas se dão. Elas são multilaterais, multipolares e
policêntricas. Os totalitarismos, ao contrário, são monocêntricos e
centrípetos, motivo pelo qual muitas vezes levam ao conflito, uma vez que não
aceitam a diversidade que as inter-relações multilaterais implicam.
Ainda
na dinâmica das inter-relações, há uma constante adaptação de organismos
ao meio e do meio aos organismos, além das adaptações dos próprios organismos
entre si. A adaptação do meio aos organismos era menor no começo filogenético
da vida, mas vem se intensificando a cada dia que passa, sobretudo devido ao
desenvolvimento tecnológico. O mundo e a cultura (inclusive a língua) são
dinâmicos, estão sempre mudando, se adaptando às novas situações que a natureza
(e a cultura) lhes apresenta. Não se adaptar é oferecer resistência, o que pode
também levar à desarmonia, ao conflito e à violência, quer contra outros seres
humanos, quer contra os demais seres vivos e à natureza em geral, como se vê
nas ações predatórias. A visão darwinista falava em competição e sobrevivência
do mais forte. As novas pesquisas em ecologia têm mostrado que sobrevive mais
aquele que se adapta mais, não necessariamente o mais forte. Se fosse assim, os
dinossauros não teriam desaparecido. Adaptar-se é procurar viver em harmonia,
conceito central do taoísmo e, indiretamente, da Ecologia Profunda (Couto,
2012: 23-67).
Adaptação
é a cara da moeda cuja coroa é a evolução. Hoje em dia é sobejamente
sabido que a evolução se dá ciclicamente. Tudo na natureza se move em ciclos.
Veja-se a alternância dia/noite, as estações do ano, o ritmo biológico de nosso
organismo, entre outros. Na própria cultura, aí inclusa a linguagem, as
mudanças se dão por ciclos. Basta observar a moda. Quantas vezes já não vimos
os estilistas, os que ditam a moda, dizerem que agora o chique é o que se fazia
nos anos 60 ou nos anos 80, por exemplo? Basta criar-se um termo para designar
isso, no caso retrô. Em Couto (2012: 179-199) há alguns exemplos de
evolução cíclica na literatura e na linguagem. Com isso, entramos no domínio da
reciclagem. Ela tem a ver diretamente com o consumismo capitalista
desenfreado. Só recicla quem tem consciência de que o consumismo e a
descartabilidade são prejudiciais à manutenção da vida na face da terra,
sobretudo a longo prazo. Para agir assim, é necessário que se pratique
uma economia sustentável, que leve a ecologia em consideração.
A
ideologia ecológica defende os três ‘r’, ou seja, redução, reutilização
e reciclagem. Descartar tudo em vez de reduzir, reutilizar e reciclar
exige uso e abuso dos recursos da natureza, e não só da natureza viva. Nossa
intervenção nela está cada vez mais predatória. Isso traz sofrimento aos seres
vivos, como o consumo exagerado de carne, que exige o sacrifício de centenas,
de milhares, de milhões de animais. A própria criação extensiva de gado de
corte, e até de leiteiro, exige o estabelecimento de imensas pastagens, com uma
única espécie de gramínea ou capim, a braquiária, por exemplo, o que implica um
sacrifício na diversidade da flora e até da fauna. Para reduzir a última, como
no caso dos insetos, recorre-se aos pesticidas. Aqui a redução é prejudicial,
uma vez que reduz a diversidade de seres vivos no ecossistema, o que traz
sofrimento a esses seres.
Voltando
à visão holística, ao todo do ecossistema, notamos que nessa qualidade ele se
inter-relaciona com os ecossistemas vizinhos, fornecendo e recebendo matéria e
energia deles. Dito em outras palavras, esse todo apresenta a característica da
abertura, às vezes também chamada de porosidade. Essa
característica do ecossistema, juntamente com a diversidade, enseja a
tolerância para com os de outras espécies, outros grupos étnicos, vai contra o
etnocentrismo, o racismo e os demais “ismos” acima mencionados. Ela nos ensina
que nada está isolado, portanto, recebe influência de fora, além de enviar seus
influxos para fora. Ela nos leva a aceitar a ideia do outro, mesmo quando não
concordamos com ela. Aceitá-la não no sentido de adotá-la, mas no de
respeitá-la. Afinal, o certo e o errado são conceitos criados socialmente, logo,
são relativos. Além de esses conceitos não existirem na natureza, variam de
comunidade para comunidade e de um segmento social para outro.
Existem
diversos outros conceitos ecológicos de que se pode lançar mão na ADE. Entre
eles, temos relações harmônicas versus relações desarmônicas, tanto
intraespecíficas quanto interespecíficas. Entre as relações harmônicas
interespecíficas, poderíamos mencionar o inquilinismo, o comensalismo
e o mutualismo. No que tange às relações desarmônicas
interespecíficas, sobressaem-se o predatismo (predador versus
presa) e o parasitismo. Entre as relações desarmônicas
intraespecíficas, poderíamos trazer à baila a competição, que se dá
também nas interespecíficas. Aquilo que se chama ‘comunhão’ (pressuposto para a
interação comunicativa) se enquadra nas relações harmônicas intraespecíficas.
Enfim, na própria ecologia geral, bem como em suas vertentes filosófica,
sociológica etc., já temos os conceitos necessários e suficientes para
efetuarmos estudos críticos sobre textos que falam de diversos assuntos. Nos
dias atuais não precisamos mais ter medo do biologismo. Usar a ecologia geral
como base para os estudos culturais (e linguísticos) é assumir o ponto de vista
da vida, justamente estudada pela Biologia, de que a ecologia geral (e a
linguística) faz parte.
Uma
vez que no próprio âmbito da Ecolinguística já existe a possibilidade de se
fazerem análises e críticas de textos, de discursos, sobretudo
antiambientalistas, como fazem a ‘ecolinguística crítica’, ‘a linguística
ambiental’ e a ‘linguística ecocrítica’, é necessário que demos algumas razões
para se propor a linguística ecossistêmica crítica ou análise do discurso ecológica.
Com efeito, a ecolinguística crítica já tem estudado, assim como a análise do
discurso tradicional, temas como os recém-mencionados, além do feminismo, do
‘racismo’, da ‘homofobia’ e outras. Tudo isso é muito importante. No entanto,
há algo maior que todos esses temas, a que estão subordinados, vale dizer, a
defesa da vida na face da terra, em que entra a luta contra tudo que traz
sofrimento físico, mental ou social, já que somos seres biopsicossociais. O
feminismo, a luta dos movimentos negros e outras devem ser respeitadas não por
se tratar de “mulheres” e “negros”, respectivamente, mas por se tratar de seres
humanos que sofrem com alguns tratamentos discriminatórios. Destacá-los como
devendo ser protegidos por serem mulheres e negros já á uma atitude separatista,
que pode estimular o antagonismo. Devemos proteger todas as espécies vivas
(animais e vegetais) não em detrimento dos chamados “animais racionais”.
Devemos defender os direitos da mulher e dos negros não por serem mulheres e
negros, mas por serem seres humanos iguais a quaisquer outros. Ser a favor da
vida animal e vegetal não é ser contra a vida dos humanos. Pelo contrário, é
inserir a causa deles em uma luta maior, uma vez que se as demais espécies
desaparecerem nós também desaparecemos. O mesmo tipo de argumento vale para
outras “ideologias” atuais. Lutar contra o antropocentrismo, o androcentrismo e
o classismo é lutar pela vida, é ir contra algo que provoca sofrimento.
Devemos
lutar inclusive contra a depredação da natureza não animada. Se não cuidarmos
das águas, elas podem ser poluídas a tal ponto que podem envenenar não só a
nós, mas também aos demais seres vivos. Elas podem mesmo desaparecer, com o que
todos pereceriam. Do mesmo modo devemos ter cuidado para não poluir o ar
demasiadamente. Do contrário não teremos oxigênio para respirar. Não devemos
usar determinados produtos que causam o efeito estufa, pois, do contrário,
poderemos morrer todos assados ou, então, com câncer de pele. Não se trata de
uma visão apocalíptica nem catastrofista. Trata-se de ser realista. O que já
vimos até agora aponta claramente para essa direção.
Vejamos
alguns argumentos que justificam, a nosso ver, a necessidade de uma análise do
discurso ecológica, complementando a ecolinguística crítica (EC). Primeiro, a
ADE/LEC parte do ecossistema, o locus dos seres vivos. A EC não
necessariamente. Ela até pode fazê-lo. No entanto, seu ponto de vista
privilegiado é a ideologia política. Ora, ideologia direciona, é ‘tendenciosa”,
tanto que Marx a chamou de “falsa consciência”. De fato, a EC é eminentemente
de cariz político, ao passo que a ADE é ecológica, logo, ligada à biologia, a
ciência da vida. Segundo, a EC usa conceitos ecológicos consciente e
explicitamente como metáfora. A ADE é uma disciplina da ecologia geral. Os
conceitos ecológicos não são transplantados da ‘ecologia’ para ela. Eles são
partes naturais de seu arcabouço epistemológico. Praticar ADE é praticar
Ecologia. Terceiro, notamos que às vezes, a EC se confunde com a AD em geral,
como mostram alguns trabalhos publicados. A ADE, nunca. Por ser ecológica, ela
tem um viés, sim, mas o viés da defesa da vida. Quarto, para a ADE, e para a
visão ecológica de mundo em geral, essas questões devem ser incluídas no
contexto mais amplo e abrangente da vida, da preservação dela na face da terra,
bem como no da recusa de tudo que pode trazer sofrimento.
Gostaria
de terminar lembrando algumas das principais questões que precisam ser levadas
em conta por quem quer que seja que deseje estudar, avaliar, analisar qualquer texto
ou discurso da perspectiva da ADE. Primeiro, é preciso indagar sobre o contexto
em que o assunto do texto/discurso a ser examinado está inserido. Na
linguística ecossistêmica, a que ela pertence, a resposta a essa pergunta já
traz o referencial e o universo de discurso de que a questão faz parte, como se
fosse o ecossistema em que as relações a ser examinadas estão incluídas.
Com isso, já somos levados à segunda questão, a do holismo. O assunto
examinado deve ser encarado no âmbito da totalidade das interações de
que participa. Isso leva à terceira questão, que é a da diversidade.
Esta tem toda uma série de consequências, algumas das quais estão discutidas
acima no presente capítulo. Uma quarta questão é a da evolução. Tanto a
natureza quanto a cultura e a mente estão sempre mudando. Em quinto lugar,
nota-se que essa evolução é o resultado de uma constante adaptação às
novas circunstâncias, às novas configurações da rede de inter-relações. Tudo
que não se adapta é excluído, sucumbe ou desaparece. Em sexto lugar, sabe-se
que isso ocorre porque o todo delimitado pelo observador apresenta a
característica da abertura ou porosidade. Ele está em uma perene
interação com o que se encontra em volta. Em sétimo lugar, os humanos precisam
ter o cuidado de apenas usar os recursos da natureza, não abusá-los. Nela “nada
se cria, nada se forma; tudo se transforma”, há uma reciclagem constante
dos recursos disponíveis. Como os humanos têm consciência, precisam também reduzir
e reutilizar tudo que tiverem que utilizar. Em oitavo lugar, é bom
lembrar que essa atitude leva à sustentabilidade, à garantia de que as
gerações futuras também poderão satisfazer suas necessidades. Em nono lugar, é
necessário lembrar que só age assim quem tem uma visão de longo prazo,
que, de novo, é a da natureza, que não tem pressa. Por fim, nota-se em todas
essas questões que a ADE/LEC não é apenas descritiva e crítica relativamente ao
objeto de estudo. Pelo contrário, ela pratica o prescritivismo, uma vez
que segue a ideologia ecológica (ideologia da vida) da Ecologia
Profunda, que combate com ardor tudo que pode trazer sofrimento.
Referências
Referências
Couto,
Hildo Honório do. 2007. Ecolinguística: Estudo das relações entre língua e
meio ambiente. Brasília: Thesaurus.
_______.
O tao da linguagem: Um caminho suave para a redação. Campinas: Pontes.
_______.
2013. O que é ecolinguística, afinal? Cadernos de linguagem e sociedade
v. 14, n. 1, p. 302.
Fill, Alwin. 1993. Ökologie: Eine Einführung.
Tübingen: Gunter Narr Verlag.
Ramos,
Rui. 2013. O rei de Espanha foi caçar elefantes: A construção discursiva do
evento nos media portugueses. Cadernos de linguagem e sociedade
v. 14, n. 1.
NOTA
Sob forma revista e drasticamente ampliada, este texto saiu no livro Antropologia do imaginário, ecolinguística e metáfora (Brasília: Thesaurus, 2014, p. 27-41), organizado por Elza K. N. do Couto, Ema M. Dunck-Cintra & Lorena A. O. Borges, com o título de: "Linguística ecossistêmica crítica ou Análise do discurso ecológica".
A versão publicada no livro foi traduzida para o inglês e está disponível sob o título de “Critical ecosystemic linguistics” em:
http://ecosystemic-linguistics.blogspot.com.br/2015/11/ecological-discourse-analysis-eda.html
NOTA
Sob forma revista e drasticamente ampliada, este texto saiu no livro Antropologia do imaginário, ecolinguística e metáfora (Brasília: Thesaurus, 2014, p. 27-41), organizado por Elza K. N. do Couto, Ema M. Dunck-Cintra & Lorena A. O. Borges, com o título de: "Linguística ecossistêmica crítica ou Análise do discurso ecológica".
A versão publicada no livro foi traduzida para o inglês e está disponível sob o título de “Critical ecosystemic linguistics” em:
http://ecosystemic-linguistics.blogspot.com.br/2015/11/ecological-discourse-analysis-eda.html
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