segunda-feira, 1 de abril de 2013

Análise do Discurso Ecológica (ADE)

A fim de comprovar mais uma vez o holismo praticado pela linguística ecossistêmica apresentada em postagens anteriores, vou tentar mostrar como se pode fazer análise do discurso ecologicamente, vale dizer, vou propor a análise do discurso ecológica (ADE). Por ser parte da linguística ecossistêmica, um nome alternativo para ela é linguística ecossistêmica crítica (LEC), por sugestão tanto da ‘análise do discurso crítica’ quanto da ‘ecolinguística crítica’. Eu não encontrei nenhuma publicação em português em que a expressão ‘análise do discurso ecológica’ tivesse sido usada. O máximo que vi foi ‘análise de discurso ecológico’, estudo que pode ser feito de qualquer perspectiva, inclusive da filosófica. Em uma breve pesquisa na internet constatei que a expressão ecological discourse analysis já foi usada pelo menos por Michael Zukosky, da Temple University, no contexto de seus estudos em antropologia linguística, ecologia política e etnografia da tecnologia e da ciência. Mas, ele quis dizer ‘analysis of ecological discourse’, ou seja, ‘análise de discurso ecológico’, análise que tem por objetivo os discursos ambientalistas, coisa que pode ser feita de diversas perspectivas, sobretudo da da análise do discurso tradicional. Encontrei a expressão também em francês (analyse du discours écologique), espanhol (análisis del discurso ecológica) e alemão (ökologische Diskursanalyse), mas apenas como citação. Não me deparei com nenhum ensaio sobre o assunto. O fato é que muito provavelmente esta seja a primeira vez que se propõe uma análise do discurso que erija seu arcabouço epistemológico no seio da ecologia. No que segue, usarei preferencialmente a expressão ‘análise do discurso ecológica’ e respectiva sigla, ADE, mas, eventualmente poderá aparecer também a designação alternativa ‘linguística ecossistêmica crítica’ e respectiva sigla, LEC, e até a sigla composta ADE/LEC.
As primeiras reflexões sobre linguística ecossistêmica crítica foram feitas em Couto (2013), tendo por base os conceitos da ecologia geral e os que já vinham sendo introduzidos na linguística ecossistêmica. Com efeito, tem sido dito em diversas ocasiões que a linguística ecossistêmica abriga também estudos de ecolinguística crítica, linguística ambiental e/ou linguística ecocrítica, uma vez que leva em conta tando a endoecologia quanto a exoecologia da língua. Sua abordagem é holística. Enfim, contrariamente à esmagadora maioria dos ecolinguistas, esta versão da disciplina leva o conceito de abrangência, holismo e multidisciplinaridade a suas últimas consequências. A linguística ecossistêmica estuda os fenômenos da linguagem sob qualquer forma pela qual possam aparecer.
Diante do que acaba de ser dito, é preciso mostrar como e porque eu tenho certeza de que na ecologia geral e nas suas subdivisões filosófica e sociológica, entre outras, temos grande parte dos conceitos (se não todos) que se fazem necessários para analisar discursos. Comecemos do conceito ecológico mais abrangente, o de ecossistema, que é o todo formado por um população de organismos e suas interações com o meio e entre si. É em seu interior que se desenrola todo o drama que constitui a base de minha argumentação. Todos os demais conceitos emergem de seu interior, o que já justificaria o nome 'linguística ecossistêmica'. Sabemos que ele é encarado como um todo, motivo pelo qual o holismo é o segundo conceito mais abrangente. Ecologicamente, o objeto de estudo deve ser surpreendido em sua totalidade, uma vez que em seu interior nada está isolado. Quando nos atemos a apenas uma faceta dele, facilmente podemos cair na parcialidade, parente próxima do partidarismo e do sectarismo. No interior do todo do ecossistema, o que temos é uma diversidade de seres e fenômenos, entre os quais se dão inúmeras inter-relações. Aliás, estas últimas são definidoras do ecossistema, como nos diz qualquer manual de introdução à Ecologia. Não é necessário recorrer a nenhuma ideologia extraecológica (religiosa, marxista, política, partidária, feminista etc.) para se praticar ADE. A versão da ecolinguística chamada linguística ecossistêmica já encontra, na própria fonte de que emana, tudo de que precisa para erigir seu arcabouço epistemológico, assim como todos os recursos heurísticos para se avaliar criticamente todo e qualquer fenômeno linguístico, aí inclusas as análises ecológicas de qualquer tipo de texto, ou seja, não só de textos ambientalistas. Essa abordagem implica a assunção de uma ideologia ecológica, ou ideologia da vida, se é que vamos falar em ideologia. Ela se apoia nas ideias da Ecologia Profunda, que, como disse seu criador, o filósofo norueguês Arne Naess, não é apenas descritiva e crítica, mas também prescritiva. Ela luta pelos seres vivos de todas as espécies, criticando quem vai contra a defesa da vida na face da terra. Seu ponto de honra é a defesa intransigente da vida. Ela se posiciona contra tudo que vai à vida, em todas as suas formas, e, consequentemente, contra tudo que pode trazer sofrimento. Porém, sempre pacificamente, sem violência, como fazia Mahatma Gandhi, uma das fontes de inspiração da Ecologia Profunda. Afinal, para falar sério não é necessário falar de cara feia.
No caso dos humanos, o sofrimento pode ser físico (natural), mental ou social. Sobre o sofrimento físico não é necessário falar, pois qualquer ato que o provoque salta à visa, não é necessário fazer grandes análises para se chegar à conclusão de que um ato de pedofilia traz sofrimento ao (à) menor de que é vítima, para não falar em violências que causam ferimentos. Os assassinatos cruéis causam o maior tipo de sofrimento que se possa imaginar, a morte. Sofrimento mental pode ser causado pelo assédio moral de um superior ao inferior no ambiente de trabalho, por xingamentos, pelas agressões verbais de um marido bêbado e/ou violento à mulher e/ou aos filhos. Sofrimento social é, por exemplo, expor alguém ao ridículo. É muito importante, porém, lembrarmo-nos de que não são só os humanos que podem ser submetidos ao sofrimento. Os demais animais também. No prefácio a Couto (2007), vemos um relato sobre sofrimento infligido a animais em fazendas do interior. Mas, não são só os animais domésticos que não devem ser submetidos a situações que causam sofrimento. Os demais também. A caça e a pesca lúdicas estão nesse caso. Quando o rei da Espanha foi caçar (matar) elefantes, o objetivo era a “diversão” do monarca. O sofrimento dos elefantes não era posto em questão, como se pode ver muito bem analisado em Ramos (2013).
Um exemplo interessante de situação que provoca sofrimento em todos os sentidos (físico, mental, social) é a situação da mulher em alguns países muçulmanos radicais. Como sabemos, ela tem muito menos direitos do que o homem, e muito mais obrigações do que ele. Caso ela não obedeça, pode ser exposta à execração pública, ser apedrejada e até executada de maneira que para nós parece cruel e perversa. Alguns críticos ocidentais, inclusive alguns antropólogos e sociólogos, alegam que isso faz parte da cultura muçulmana, aceita pelas próprias mulheres muçulmanas. No entanto, lembra Arne Naess, nesses próprios países existe pelo menos uma pequena minoria que é contra esse tipo de comportamento em relação à mulher. É essa minoria que deve receber nosso apoio porque ela luta contra o sofrimento das mulheres em questão. Deve ficar bem claro que, para a ADE, essa defesa não é necessariamente uma atitude feminista. É muito mais do que isso. É luta contra atos que causam sofrimento a um ser humano, que, antes de o ser é um ser vivo, que sofre. O que é mais, por ser um ser vivo social, sofre não só fisicamente, mas também mental e socialmente. Para a linguística ecossistêmica, que segue a Ecologia Profunda, o feminismo é importante, mas, se for radicalizado, torna-se parcial, partidário, a ponto de ficar incondicionalmente contra o homem, atitude inteiramente equivocada. Em casos extremos, essa ideologia pode levar a considerar o homem em geral como um antagonista, um inimigo, não como um ser humano que existe para ser aliado e parceiro da mulher. Já ouvimos falar de um boato segundo o qual, na época do auge do radicalismo feminista, um grupo de mulheres da Holanda tinha por objetivo sequestrar homens, “usá-los” e depois matá-los. Nem é preciso dizer que se trata de uma atitude fanaticamente radical, fundamentalista, que vai frontalmente contra a ideologia ecológica. 
Vejamos alguns temas, entre inúmeros outros, a que a ADE pode se dedicar preferencialmente, bem como alguns conceitos ecológicos que podem ser apropriados por ela. Em Fill (1993) já encontramos sugestões de uma série de assuntos que podem (e devem) ser estudados por uma análise do discurso ecológica, mesmo que avant la lettre. Em primeiro lugar, temos o antropocentrismo, que tem levado os humanos a se acharem no direito de devastar tudo em prol do próprio bem-estar. Em segundo lugar, vem a questão das línguas minoritárias em contraposição às línguas dominantes que ameaçam sua existência. Da perspectiva da ADE, devemos lutar pela sobrevivência das primeiras porque sua extinção implica a descaracterização da identidade de seus falantes, que é o mais importante, o que os faz sofrer. Isso leva a outro tema muito importante, que é o culto do desenvolvimentismo. Desenvolver é procurar crescer, ir de um estado “menor” para outro “maior”, o que implica que o grande é melhor do que o pequeno. Na cultura ocidental, os dois conceitos se opõem, é um ou o outro. Na oriental, como no taoísmo (Couto, 2012: 23-47), e na ecologia profunda, eles são complementares. Vejamos o que está dito em um poema de Ralph Waldo Emerson (1803-1882), em uma disputa entre a montanha e o esquilo. Este disse àquela: Se eu não sou tão grande como você / Você não é tão pequena como eu. Vale dizer, o grande não é necessariamente melhor do que o pequeno. Pelo contrário, o grande precisa do pequeno para se afirmar como tal.
Em Couto (2007: 347-356), há uma longa lista de atitudes preconceituosas que causam sofrimento no público alvo. A primeira é o já mencionado antropocentrismo, que consiste em colocar os humanos no centro do universo, tudo mais existindo apenas parar servi-los. Ele pode se mostrar no que tange à natureza não viva, como ao dizermos que um dia ensolarado é bom tempo, e, se chove, mau tempo. Em se tratando de natureza vegetal, consideramos erva daninha ou mato as plantas que não nos são úteis, mas teimam em nascer junto com as plantações, e assim por diante.  A segunda é o etnocentrismo, que consiste em considerar o que existe em nossa cultura melhor do que o que existe na dos outros, mas não na nossa. O androcentrismo seria uma terceira manifestação da linguagem preconceituosa, uma vez que traz sofrimento à mulher. Algumas de suas variantes recebem o nome de machismo, sexismo e outros. Como se vê, a justa luta das feministas se enquadra aqui também. Ela está no contexto mais amplo da igualdade de direitos e deveres dos seres humanos, independentemente de sexo. Uma quarta seria o classismo ou aulicismo, que consiste em considerar a linguagem das elites urbanas como melhor do que a dos habitantes da zona rural. Tanto que desde os primórdios da língua portuguesa, os corteses eram os habitantes da corte, ao passo que os da vila eram os vilões. Tudo que se refere à vida rural está associado a rude ou rústico, palavras que têm a mesma origem. É o caso de populacho, plebe, pagão, gentio etc., por oposição à elite, ou escol. Os habitantes da cidade agiriam com urbanidade, teriam civilidade (de civis = cidade em latim).
Nesse contexto, poderíamos mencionar o fenômeno conhecido entre os sociolinguistas como hipercorreção. De tanto ouvir dos habitantes da zona urbana que praça e carça são expressões “erradas” e que o “correto” é placa e calça, respectivamente, os habitantes da zona rural acabam se atrapalhando e passam a substituir todos os “r” que ocorrem nessas posições por “l”, produzindo formas que os linguistas têm chamado de “hipercorretas”, tais como “Cleusa” (historicamente), “malmita”, “galfo” etc. Como lhe dizem que veio e faia devem ser substituídos por velho e falha, respectivamente, colocam o “lh” mesmo onde há “i” até mesmo no português estatal (padrão), como “melha” por “meia”, “pilhor” por “pior” etc. Ora, isso é resultado de atitudes discriminatórias contra o modo de falar dos habitantes da zona rural, e toda discriminação produz sofrimento social, uma vez que ridiculariza o discriminado.
Ainda no caso da linguagem rural, em que se diz nóis vai trabaiá, considerá-la como errada não é uma atitude ecologicamente correta. Na verdade, não se trata de linguagem “errada” nem de uma “deformação” da “boa” linguagem do português estatal (padrão). Pelo contrário, é a linguagem rural que é concreta, real, existe efetivamente como meio de comunicação entre os habitantes das diversas comunidades rurais.  É a linguagem estatal que é uma abstração feita a partir das diversas variedades linguísticas que constituem o que chamamos de língua portuguesa como um todo. Assim se poderia dizer que ela não está presente em atos de interação concretos que se dão entre membros de comunidades de fala concretas. Em suma, a linguagem rural e a da periferia das cidades, que é uma continuação dela, é pura e simplesmente uma manifestação da diversidade dialetal existente no seio do ecossistema linguístico brasileiro. Diversidade significa riqueza, como vemos na ecologia geral.
Passando à consideração de alguns conceitos ecológicos que podem (e devem) ser usados na análise de textos, começamos justamente pelo de diversidade. Sua aceitação implica uma atitude de tolerância para com o outro, sobretudo quando é diferente. A não aceitação implica intolerância, o que pode conduzir à agressividade e à violência, sobretudo contra as minorias de todos os tipos. Sua aceitação pressupõe uma política de cooperação e harmonia, conceito que já está previsto na própria ecologia biológica, no caso, nas relações harmônicas, que podem se dar não só intraespecífica, mas também interespecificamente. No primeiro caso, temos as relações entre os seres humanos; no segundo, entre eles e seres de outras espécies de animais. O contrário seria a subordinação dos mais fracos aos mais fortes e a consequente imposição da vontade dos segundos sobre os primeiros. Como se vê, aqui entra a questão do poder. Isso pode levar ao fundamentalismo que, como sabemos, frequentemente chega até à violência. Por isso, a Ecologia Profunda que nós sigo recomenda uma atitude à la Gandhi, isto é, firme, porém, não violenta.
Intimamente associada à diversidade temos a questão das interações (inter-relações, relações). No interior do ecossistema, nada está isolado, tudo está de alguma forma relacionado a tudo, direta ou indiretamente. Havendo uma diversidade de seres e inter-relações, pode-se dizer do próprio ecossistema que ele é uma cadeia ou teia de inter-relações que se dão entre organismos, entre organismos e meio, e assim por diante. Haverá tanto mais relações quanto mais diversidade de organismos e de meio houver no ecossistema, de modo que os dois conceitos estão intimamente inter-relacionados. Aí temos mais um tipo de inter-relação. As relações estão intimamente associadas à harmonia do todo, uma vez que é em seu interior que elas se dão. Elas são multilaterais, multipolares e policêntricas. Os totalitarismos, ao contrário, são monocêntricos e centrípetos, motivo pelo qual muitas vezes levam ao conflito, uma vez que não aceitam a diversidade que as inter-relações multilaterais implicam.
Ainda na dinâmica das inter-relações, há uma constante adaptação de organismos ao meio e do meio aos organismos, além das adaptações dos próprios organismos entre si. A adaptação do meio aos organismos era menor no começo filogenético da vida, mas vem se intensificando a cada dia que passa, sobretudo devido ao desenvolvimento tecnológico. O mundo e a cultura (inclusive a língua) são dinâmicos, estão sempre mudando, se adaptando às novas situações que a natureza (e a cultura) lhes apresenta. Não se adaptar é oferecer resistência, o que pode também levar à desarmonia, ao conflito e à violência, quer contra outros seres humanos, quer contra os demais seres vivos e à natureza em geral, como se vê nas ações predatórias. A visão darwinista falava em competição e sobrevivência do mais forte. As novas pesquisas em ecologia têm mostrado que sobrevive mais aquele que se adapta mais, não necessariamente o mais forte. Se fosse assim, os dinossauros não teriam desaparecido. Adaptar-se é procurar viver em harmonia, conceito central do taoísmo e, indiretamente, da Ecologia Profunda (Couto, 2012: 23-67).
Adaptação é a cara da moeda cuja coroa é a evolução. Hoje em dia é sobejamente sabido que a evolução se dá ciclicamente. Tudo na natureza se move em ciclos. Veja-se a alternância dia/noite, as estações do ano, o ritmo biológico de nosso organismo, entre outros. Na própria cultura, aí inclusa a linguagem, as mudanças se dão por ciclos. Basta observar a moda. Quantas vezes já não vimos os estilistas, os que ditam a moda, dizerem que agora o chique é o que se fazia nos anos 60 ou nos anos 80, por exemplo? Basta criar-se um termo para designar isso, no caso retrô. Em Couto (2012: 179-199) há alguns exemplos de evolução cíclica na literatura e na linguagem. Com isso, entramos no domínio da reciclagem. Ela tem a ver diretamente com o consumismo capitalista desenfreado. Só recicla quem tem consciência de que o consumismo e a descartabilidade são prejudiciais à manutenção da vida na face da terra, sobretudo a longo prazo. Para agir assim, é necessário que se pratique uma economia sustentável, que leve a ecologia em consideração.
A ideologia ecológica defende os três ‘r’, ou seja, redução, reutilização e reciclagem. Descartar tudo em vez de reduzir, reutilizar e reciclar exige uso e abuso dos recursos da natureza, e não só da natureza viva. Nossa intervenção nela está cada vez mais predatória. Isso traz sofrimento aos seres vivos, como o consumo exagerado de carne, que exige o sacrifício de centenas, de milhares, de milhões de animais. A própria criação extensiva de gado de corte, e até de leiteiro, exige o estabelecimento de imensas pastagens, com uma única espécie de gramínea ou capim, a braquiária, por exemplo, o que implica um sacrifício na diversidade da flora e até da fauna. Para reduzir a última, como no caso dos insetos, recorre-se aos pesticidas. Aqui a redução é prejudicial, uma vez que reduz a diversidade de seres vivos no ecossistema, o que traz sofrimento a esses seres.
Voltando à visão holística, ao todo do ecossistema, notamos que nessa qualidade ele se inter-relaciona com os ecossistemas vizinhos, fornecendo e recebendo matéria e energia deles. Dito em outras palavras, esse todo apresenta a característica da abertura, às vezes também chamada de porosidade. Essa característica do ecossistema, juntamente com a diversidade, enseja a tolerância para com os de outras espécies, outros grupos étnicos, vai contra o etnocentrismo, o racismo e os demais “ismos” acima mencionados. Ela nos ensina que nada está isolado, portanto, recebe influência de fora, além de enviar seus influxos para fora. Ela nos leva a aceitar a ideia do outro, mesmo quando não concordamos com ela. Aceitá-la não no sentido de adotá-la, mas no de respeitá-la. Afinal, o certo e o errado são conceitos criados socialmente, logo, são relativos. Além de esses conceitos não existirem na natureza, variam de comunidade para comunidade e de um segmento social para outro.
Existem diversos outros conceitos ecológicos de que se pode lançar mão na ADE. Entre eles, temos relações harmônicas versus relações desarmônicas, tanto intraespecíficas quanto interespecíficas. Entre as relações harmônicas interespecíficas, poderíamos mencionar o inquilinismo, o comensalismo e o mutualismo. No que tange às relações desarmônicas interespecíficas, sobressaem-se o predatismo (predador versus presa) e o parasitismo. Entre as relações desarmônicas intraespecíficas, poderíamos trazer à baila a competição, que se dá também nas interespecíficas. Aquilo que se chama ‘comunhão’ (pressuposto para a interação comunicativa) se enquadra nas relações harmônicas intraespecíficas. Enfim, na própria ecologia geral, bem como em suas vertentes filosófica, sociológica etc., já temos os conceitos necessários e suficientes para efetuarmos estudos críticos sobre textos que falam de diversos assuntos. Nos dias atuais não precisamos mais ter medo do biologismo. Usar a ecologia geral como base para os estudos culturais (e linguísticos) é assumir o ponto de vista da vida, justamente estudada pela Biologia, de que a ecologia geral (e a linguística) faz parte.
Uma vez que no próprio âmbito da Ecolinguística já existe a possibilidade de se fazerem análises e críticas de textos, de discursos, sobretudo antiambientalistas, como fazem a ‘ecolinguística crítica’, ‘a linguística ambiental’ e a ‘linguística ecocrítica’, é necessário que demos algumas razões para se propor a linguística ecossistêmica crítica ou análise do discurso ecológica. Com efeito, a ecolinguística crítica já tem estudado, assim como a análise do discurso tradicional, temas como os recém-mencionados, além do feminismo, do ‘racismo’, da ‘homofobia’ e outras. Tudo isso é muito importante. No entanto, há algo maior que todos esses temas, a que estão subordinados, vale dizer, a defesa da vida na face da terra, em que entra a luta contra tudo que traz sofrimento físico, mental ou social, já que somos seres biopsicossociais. O feminismo, a luta dos movimentos negros e outras devem ser respeitadas não por se tratar de “mulheres” e “negros”, respectivamente, mas por se tratar de seres humanos que sofrem com alguns tratamentos discriminatórios. Destacá-los como devendo ser protegidos por serem mulheres e negros já á uma atitude separatista, que pode estimular o antagonismo. Devemos proteger todas as espécies vivas (animais e vegetais) não em detrimento dos chamados “animais racionais”. Devemos defender os direitos da mulher e dos negros não por serem mulheres e negros, mas por serem seres humanos iguais a quaisquer outros. Ser a favor da vida animal e vegetal não é ser contra a vida dos humanos. Pelo contrário, é inserir a causa deles em uma luta maior, uma vez que se as demais espécies desaparecerem nós também desaparecemos. O mesmo tipo de argumento vale para outras “ideologias” atuais. Lutar contra o antropocentrismo, o androcentrismo e o classismo é lutar pela vida, é ir contra algo que provoca sofrimento.
Devemos lutar inclusive contra a depredação da natureza não animada. Se não cuidarmos das águas, elas podem ser poluídas a tal ponto que podem envenenar não só a nós, mas também aos demais seres vivos. Elas podem mesmo desaparecer, com o que todos pereceriam. Do mesmo modo devemos ter cuidado para não poluir o ar demasiadamente. Do contrário não teremos oxigênio para respirar. Não devemos usar determinados produtos que causam o efeito estufa, pois, do contrário, poderemos morrer todos assados ou, então, com câncer de pele. Não se trata de uma visão apocalíptica nem catastrofista. Trata-se de ser realista. O que já vimos até agora aponta claramente para essa direção. 
Vejamos alguns argumentos que justificam, a nosso ver, a necessidade de uma análise do discurso ecológica, complementando a ecolinguística crítica (EC). Primeiro, a ADE/LEC parte do ecossistema, o locus dos seres vivos. A EC não necessariamente. Ela até pode fazê-lo. No entanto, seu ponto de vista privilegiado é a ideologia política. Ora, ideologia direciona, é ‘tendenciosa”, tanto que Marx a chamou de “falsa consciência”. De fato, a EC é eminentemente de cariz político, ao passo que a ADE é ecológica, logo, ligada à biologia, a ciência da vida. Segundo, a EC usa conceitos ecológicos consciente e explicitamente como metáfora. A ADE é uma disciplina da ecologia geral. Os conceitos ecológicos não são transplantados da ‘ecologia’ para ela. Eles são partes naturais de seu arcabouço epistemológico. Praticar ADE é praticar Ecologia. Terceiro, notamos que às vezes, a EC se confunde com a AD em geral, como mostram alguns trabalhos publicados. A ADE, nunca. Por ser ecológica, ela tem um viés, sim, mas o viés da defesa da vida. Quarto, para a ADE, e para a visão ecológica de mundo em geral, essas questões devem ser incluídas no contexto mais amplo e abrangente da vida, da preservação dela na face da terra, bem como no da recusa de tudo que pode trazer sofrimento.
Gostaria de terminar lembrando algumas das principais questões que precisam ser levadas em conta por quem quer que seja que deseje estudar, avaliar, analisar qualquer texto ou discurso da perspectiva da ADE. Primeiro, é preciso indagar sobre o contexto em que o assunto do texto/discurso a ser examinado está inserido. Na linguística ecossistêmica, a que ela pertence, a resposta a essa pergunta já traz o referencial e o universo de discurso de que a questão faz parte, como se fosse o ecossistema em que as relações a ser examinadas estão incluídas. Com isso, já somos levados à segunda questão, a do holismo. O assunto examinado deve ser encarado no âmbito da totalidade das interações de que participa. Isso leva à terceira questão, que é a da diversidade. Esta tem toda uma série de consequências, algumas das quais estão discutidas acima no presente capítulo. Uma quarta questão é a da evolução. Tanto a natureza quanto a cultura e a mente estão sempre mudando. Em quinto lugar, nota-se que essa evolução é o resultado de uma constante adaptação às novas circunstâncias, às novas configurações da rede de inter-relações. Tudo que não se adapta é excluído, sucumbe ou desaparece. Em sexto lugar, sabe-se que isso ocorre porque o todo delimitado pelo observador apresenta a característica da abertura ou porosidade. Ele está em uma perene interação com o que se encontra em volta. Em sétimo lugar, os humanos precisam ter o cuidado de apenas usar os recursos da natureza, não abusá-los. Nela “nada se cria, nada se forma; tudo se transforma”, há uma reciclagem constante dos recursos disponíveis. Como os humanos têm consciência, precisam também reduzir e reutilizar tudo que tiverem que utilizar. Em oitavo lugar, é bom lembrar que essa atitude leva à sustentabilidade, à garantia de que as gerações futuras também poderão satisfazer suas necessidades. Em nono lugar, é necessário lembrar que só age assim quem tem uma visão de longo prazo, que, de novo, é a da natureza, que não tem pressa. Por fim, nota-se em todas essas questões que a ADE/LEC não é apenas descritiva e crítica relativamente ao objeto de estudo. Pelo contrário, ela pratica o prescritivismo, uma vez que segue a ideologia ecológica (ideologia da vida) da Ecologia Profunda, que combate com ardor tudo que pode trazer sofrimento.

Referências
Couto, Hildo Honório do. 2007. Ecolinguística: Estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília: Thesaurus.
_______. O tao da linguagem: Um caminho suave para a redação. Campinas: Pontes.
_______. 2013. O que é ecolinguística, afinal? Cadernos de linguagem e sociedade v. 14, n. 1, p. 302. 
Fill, Alwin. 1993. Ökologie: Eine Einführung. Tübingen: Gunter Narr Verlag. 
Ramos, Rui. 2013. O rei de Espanha foi caçar elefantes: A construção discursiva do evento nos media portugueses. Cadernos de linguagem e sociedade v. 14, n. 1.

NOTA
Sob forma revista e drasticamente ampliada, este texto saiu no livro Antropologia do imaginário, ecolinguística e metáfora (Brasília: Thesaurus, 2014, p. 27-41), organizado por Elza K. N. do Couto, Ema M. Dunck-Cintra & Lorena A. O. Borges, com o título de: "Linguística ecossistêmica crítica ou Análise do discurso ecológica".
A versão publicada no livro foi traduzida para o inglês e está disponível sob o título de “Critical ecosystemic linguistics” em:
http://ecosystemic-linguistics.blogspot.com.br/2015/11/ecological-discourse-analysis-eda.html

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