quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A ecologia da interação comunicativa II

Em uma postagem anterior, a sexta, já falei da ecologia da interação comunicativa (EIC), como sendo o núcleo da linguagem. Pois bem, como a pesquisa é dinâmica e está sempre avançando, é chegado o momento de fazer alguns acréscimos ao que lá foi exposto.
Gostaria de começar pela famosa figura da comunicação exposta no livro Curso de linguística geral de Ferdinand de Saussure. Trata-se de duas cabeças, uma voltada para a outra com uma linha partindo da boca de um, dirigida ao ouvido da outra e vice-versa. Essa figura tem sido objeto de crítica, sob a alegação de que veria a interação linguística como algo fechado. No entanto, pelo simples fato de mostrar interação, aponta para pelo menos três fatos importantes na concepção de linguagem. Primeiro de tudo, o simples fato de salientar a própria interação, que é o ponto fulcral da linguística ecossistêmica e da ecolinguística em geral. Segundo, ela contém os dois atores da ecologia da interação comunicativa, ou seja, falante e ouvinte. Terceiro, ela sugere que o processo interlocucional é cíclico: num primeiro momento, um deles é falante e o outro ouvinte. Num segundo momento, os papéis se invertem. No terceiro de novo, e assim sucessivamente. 
Algo parecido pode ser dito da proposta de Bloomfield, logo no início de seu livro clássico Language. Ele põe os jovens Jack e Jill a interagirem, num processo que lembra o do fluxo interlocucional da ecologia da interação comunicativa, vista na outra postagem sobre EIC. O que é mais, Bloomfield mostra que a interação propriamente linguística envolve interações não linguísticas também. Vale dizer, antes de criticarmos esses dois clássicos, é bom examinar melhor suas propostas. Afinal, pelo menos indiretamente elas têm algo a ver com a visão de Bakhtin (Marxismo e filosofia da linguagem), segundo a qual o lugar em que podemos surpreender a linguagem em sua essência é a interação comunicativa. Nesse sentido, a gramática gerativa foi um retrocesso na história da linguística.
De acordo com a visão de mundo que surgiu a partir da segunda década do século passado com a teoria da relatividade, o mundo todo é uma imensa teia ou rede de interações. Tudo é interação. A interação é universal. Com o advento da ecologia, essa visão foi imensamente reforçada, como se pode ver em Capra (2002). O conceito central da ecologia é o de ecossistema, em cujo interior o que interessa são as interações (I) entre os membros de uma população (P) de organismos e seu meio, habitat ou território (T). Na linguagem é a mesma coisa: o conceito central é o de comunidade, aqui chamado de ecossistema linguístico, cujos componentes são uma população ou povo (P), convivendo em determinado lugar ou território (T) e comunicando-se entre si pela linguagem (L) que lhe é própria. A única diferença entre o ecossistema linguístico (comunidade) e o biológico (biocenose) é que, no segundo, as interações são chamadas de interações mesmo, ao passo que na interação humana elas são chamadas de linguagem (L).  
Os componentes básicos da EIC são o cenário, um falante (F), um ouvinte (O), cada um com os seus, ou seja, aquele (ou aqueles) que está (estão) ao seu lado, do seu grupo. Aquele que está no lado do falante podemos chamar de ELE1; o que está no lado do ouvinte, ELE2. O falante, como o EU da interação, pode incluir ELE1 em sua fala, mas excluir TU, o que dá o NÓS exclusivo (tupi oré). Porém, pode incluir TU, redundando no NÓS inclusivo (tupi jandé). Quando F se refere a TU mais ELE2, produz o VÓS (vocês no Brasil). O lugar do EU é aqui, o tempo é agora e o modo é assim. O lugar do TU é , o tempo então e o modo assado. O ELE de que se fala pode ser substituído por todos os substantivos da língua, uma vez que os interlocutores podem falar de qualquer coisa, de tudo. Mais uma vez, contrariamente à tradição, são os nomes que substituem os pronomes, não o contrário. Tudo de que F e O precisarem falar receberá um nome, o que mostra que o vocabulário (e toda a língua) nasce nos diversos atos de interação comunicativa que ocorrem em cada EIC. Para mais detalhes sobre esse tópico, pode-se ler a postagem de número treze, aqui mesmo.
O cenário da EIC varia em cada caso. Ele compreende o lugar (uma parte de T) e tudo ao redor, imediata e mediatamente. Essa parte do que se chama de meio ambiente natural, na verdade pode ter componentes artificiais, ou seja, o ambiente construído, como uma cidade, por exemplo. Aliás, não é só a parte física que pode entrar em ação na EIC, mas também ingredientes do meio ambiente mental e do social. Tudo de que F e O podem lançar mão eficazmente na interlocução é parte do cenário. As regras sistêmicas são consideradas o centro da linguagem para todas as teorias de orientação formalista, como a gramática gerativa. Para a ecolinguística, sobretudo para a linguística ecossistêmica, elas são, ao contrário, ancilares na interação comunicativa. Tanto que pode haver algum tipo de interação comunicativa eficaz sem elas mediante gestos, na comunhão e em casos extremos como o da interação que houve entre portugueses e índios tupinambás em Porto Seguro em 1.500.
É claro que para uma comunicação mais aprofundada, mais abstrata, as regras sistêmicas são indispensáveis. No entanto, elas podem ser infringidas, o que raramente ocorre com as regras interacionais. Vejamos o seguinte enunciado da variedade rural do português brasileiro falada na região de Major Porto, município de Patos de Minas (MG).

“... não, o cumpad’ Zé.... --- a gente ia pa roça, se tivesse de sole quente ele chamava pa nóis i ... pa casa dele pa nóis réfrescá do sole...; e se tivesse de chuva.... e pur lá nóis ficava o dia tamém. Num vortava” (Couto 1974).

Do ponto de vista das regras sistêmicas (gramática), praticamente tudo nesse excerto de diálogo é agramatical. Inclusive do ponto de vista da coerência e coesão textual ele parece algo inteiramente desconjuntado. Se levarmos em conta o contexto, o cenário em que ele foi produzido, veremos que não se trata de nenhuma monstruosidade.  
O enunciado se tivesse de chuva é, na verdade, incompleto. No entanto, no ato de interação comunicativa concreto em que apareceu, ele está em paralelo com se tivesse de sole quente ele chamava pa nóis i pa casa dele. Portanto, essa elipse é facilmente preenchida e falante e ouvinte sabem que a forma completa é se tivesse de chuva ele chamava pa nóis i pa casa dele. A interação comunicativa permite elipses, anacolutos e até outras figuras aparentemente mais abstrusas se elucidarem. O que interessa é a eficácia comunicativa. Para tanto, usa-se o princípio de economia, omitindo-se o que fica subentendido. Não é necessário repetir tudo que o interlocutor já sabe. F e O sabem que a forma não marcada de construção sintática em português é sujeito + verbo + objeto. No entanto, tudo isso pode ser infringido conforme o cenário da EIC.
No contexto do diálogo em que essa fala é resposta a uma pergunta, no caso, sobre o senhor José Altino, percebe-se que o ‘não’ inicial é uma espécie de operador de discurso com que o autor da frase coneta sua fala com a pergunta, recurso normal do português. O fato é que recuperadas todas as “estruturas profundas” (de versões antigas da gramática gerativa) normais do português e que tanto F quanto O conhecem, nota-se que o enunciado como um todo pode ser refeito do seguinte modo:

“Não, no que se refere ao compadre José, [quando a gente ia trabalhar para ele] a gente ia para a roça. Se o sol estivesse quente, ele nos chamava para ir para casa dele para refrescamos; se estivesse de chuva, [ele também nos chamava para a casa dele], e por lá passávamos o dia também. Não voltávamos ao [trabalho]”.

O importante na interação comunicativa é o entendimento. Como tanto F quanto O conheciam o cenário (contexto), as regras interacionais e as regras sistêmicas, o interlocutor entendeu o enunciado como recém-refeito sem nenhum problema. Nenhum deles achou que o enunciado original estivesse disforme. Esse é o modo tradicional de se falar localmente, uma vez que todos os membros da comunidade conhecem as “estruturas profundas”, subjacentes a eles. O que eles fazem é, na verdade, manipulá-las, de modo que o que os gerativistas chamavam antigamente de “estruturas superficiais” podem se distanciar bastante delas. O que importa é a eficácia na interação comunicativa, o que sempre se dá, nunca há incomunicação entre os membros da comunidade de fala local.
Certamente mais importantes do que as regras sistêmicas são as regras interacionais. Sem elas não há a menor possibilidade de haver uma interação comunicativa, mesmo que F e O compartilhem um sistema. Este apenas as complementa, permitindo algum entendimento na ausência de referentes. Vejamos as doze regras interacionais que já detectamos até o momento. As regras sistêmicas são, na verdade, parte delas. Elas são as últimas dentre as regras interacionais, em consonância com o pensamento de Coseriu (1968), que afirmou que o sistema está na fala, mas a fala não está no sistema.     

1) F e O ficam próximos um do outro, aproximadamente um metro.
2) F e O ficam de frente um para o outro.
3) F e O devem olhar para o rosto um do outro, se possível para os olhos.
4) a uma solicitação deve corresponder uma satisfação.
5) tanto solicitação quanto satisfação devem ser formuladas em um tom cooperativo, harmonioso, solidário, com delicadeza,
6) a solicitação deve ser precedida de algum tipo de pré-solicitação (por favor, oi etc.).
7) a tomada de turno: enquanto um fala, o outro ouve.
8) se o assunto da interação for sério, F e O devem aparentar um ar de seriedade, sem ser sisudo, carrancudo; se for leve, um ar de leveza, com expressão facial de simpatia (leve sorriso, se possível); a inversão dessas aparências pode parecer antipática, não receptiva etc.
9) F e O devem manter-se atentos, "ligados" durante a interação, sem distrações, olhares para os lados;
10) durante a interação, F e O de vez em quando devem sinalizar que estão atentos, sobretudo na interação telefônica, que ainda “estão na linha”.
11) o encerramento da interação comunicativa não deve ser feito bruscamente, mas com algum tipo de preparação; quem desejar encerrá-la deve sinalizar essa intenção (tá bom, tá, é isso etc.).
l2) em geral, é quem iniciou a interação que toma a iniciativa de encerrá-la; o contrário pode ser tido como não cooperativo, não harmonioso.
13) Regras sistêmicas (inclui toda a ‘gramática’).

As regras interacionais também podem ser infringidas, pelo menos algumas delas. Porém, essa infringência pode acarretar sanção social. No caso da de número 2, por exemplo, se o falante não se postar de frente para seu interlocutor, isso poderá ser interpretado, e o é, como descortesia, com o que não se estabelecerá a comunhão prévia, necessária para que qualquer interação seja eficaz. Mesmo que ela já tenha sido iniciada com sucesso, poderá ser quebrada.
Algo semelhante se pode dizer das demais regras interacionais. Para dar apenas mais um exemplo, vejamos a de número 4. Se O não atender a solicitação de F, este se sentirá ofendido, considerará a atitude de O como não solidária, arrogante, de desprezo etc., tudo menos cooperação e solidariedade.
A única exceção talvez seja a regra de número 1. Se F e O estiverem muito longe um do outro, O poderá não ouvir o que F disser, ou seja, a ineficácia comunicativa terá a ver com algo natural, a não captação do som proferido por F devido à distância física. Por outro lado, se estiverem perto demais um do outro teremos uma atitude socialmente mal-vinda, poderá haver a sensação de que um está invadindo o espaço do outro, o que é até mais agressivo na cultura anglo-saxônica.
As regras interacionais podem ser gerais ou específicas. Regras interacionais gerais são naturalmente aquelas que têm validade para todo o domínio da língua em questão. As regras interacionais específicas são as que têm validade só para a EIC em questão ou para a comunidade de fala em que ela se dá.   
A ideia de que as regras sistêmicas são parte das regras interacionais pode parecer estranha ao leigo. Para dirimir qualquer dúvida, vejamos um exemplo. Quando o ouvinte recebe um enunciado como O rapaz magro ama a moça loira do falante, entende o seguinte, uma vez que compartilham as regras sistêmicas da língua: 1) quem pratica a ação de amar é o rapaz magro e o alvo do amor é a moça loira. Isso acontece porque ambos sabem que, em sua língua, canonicamente o sujeito vem antes do verbo e o objeto vem depois dele; 2) F sabe que O indica que rapaz magro é conhecido de O; 3) tanto F quanto O, bem como os demais membros da comunidade de fala deles, sabem que magro qualifica o referente da expressão O rapaz porque vem depois dela, o que se aplica também a loira relativamente a a moça; 4) F e O sabem também que ama teria que ser amam se, por exemplo, em vez do singular, na posição de sujeito tivéssemos Os rapazes magros. O mesmo se dá com o O de O rapaz magro e o a de a moça loira: 5) estão no singular para concordar com o singular de rapaz e moça, respectivamente; finalmente, 6) magro e loira estão no singular também para concordar com o singular de rapaz e moça, respectivamente. Essas regras apresentam variantes, que as versões antigas da gramática gerativa chamavam de “transformações”. A voz passiva seria uma delas, com o que teríamos 7) A moça loira é amada pelo rapaz magro. Conforme o contexto, diversas outras “transformações” pode ocorrer, às vezes chamadas de paráfrases, como É o rapaz magro que ama a moça loira, É a moça loira que é amada pelo rapaz magro e assim por diante. Assim, detectamos pelo menos sete regras sistêmicas que existem para o entendimento, logo, são auxiliares das regras interacionais.
Em suma, a língua como sistema (gramática) é apenas mais um dos componentes da interação comunicativa, e não o mais importante. Antes das regras sistêmicas é necessário haver o cenário (contexto) e as regras interacionais. As regras sistêmicas não mais do que uma parte das regras interacionais. Aquilo que chamamos até certo ponto inadequadamente de ‘língua’, na verdade compreende (a) cenário, (b) interlocutores (F, O), (c) regras interacionais, nas quais é necessáiro destacar as (c’) regras sistêmicas.

Referências
Capra, Fritjof. 2002. O tao de física. São Paulo: Cultrix.
Coseriu, Eugeniu. 1967. Teoría del lenguaje y linguistica general. Madrid: Gredos, 2a ed.
Couto, Elza Kioko Nakayama Nenoki do Couto & Hildo Honório do Couto. 2013. O discurso ‘fragmentado’ dos meninos de rua e da linguagem rural: uma visão ecolinguística. Comunicação lida no SIMELP – Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa. Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 32 de julho de 2013.
Couto, Hildo Honório do. 1974. O falar capelinhense. Uma visão sociolinguistica. Londrina: UEL, 79p.

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