0.
Introdução
Linguística
Ecossistêmica é o ramo brasileiro da Ecolinguística, que tem como centros a
Universidade de Brasília e a Universidade Federal de Goiás, o eixo
Brasília-Goiânia, em torno da Escola Ecolinguística de Brasília, embora ela
tenha participantes em diversos estados do país e até no exterior. O objetivo
desta postagem é rastrear algumas das ideias surgidas ao longo do tempo que
anteciparam o que atualmente se pratica em Linguística Ecossistêmica, que é a
variante da Ecolinguística praticada por essa escola. Este levantamento não tem
a menor pretensão à exaustividade.
Antes
de mais nada, é preciso lembrar que para a Linguística Ecossistêmica a língua é
vista como interação, no espírito do que apregoava Mikhail Bakhtin, embora não
no do seu viés marxista. Isso porque ela se baseia no conceito central da
Ecologia, o ecossistema, no qual o que interessa são as interações. Elas são
basicamente de dois tipos: interação organismo-mundo e interação
organismo-organismo. Como sabemos, linguístico-ecossistemicamente o primeiro
tipo de interação corresponde à referência, a interação que se dá
entre a palavra e o fenômeno do mundo a que ela se refere. Às vezes, essa
interação é também chamada de significação, designação, denominação, nomeação
etc. É interessante lembrar que, na interação palavra-coisa, podemos partir da
coisa e procurar pela palavra que a designa (visão onomasiológica), ou da
palavra e indagar a que coisa ela se refere (visão semasiológica). Pode
acontecer de ela se referir a mais de uma coisa, caso da polissemia ou da
homonímia. O segundo tipo de interação equivale à interação comunicativa,
costumeiramente chamada apenas de comunicação.
A
língua é interação em todos os sentidos, de modo que não se trata apenas dos
dois tipos recém-mencionados, que são interações exoecológicas. Há ainda as interações endoecológicas, aquelas que tradicionalmente se tem chamado de
estruturais. Na sintaxe, temos interação entre palavras formando uma locução,
das locuções formando orações, das orações formando parágrafos, textos e assim
por diante, além da interação entre eles e o estado de coisas a que se referem.
Na morfologia temos estratégias estruturais para o alargamento do poder
referencial da língua. Do verbo con.stitu.ir, por exemplo, a morfologia
forma con.stitu.i.ção, con.stitu.cion.al, com.stitu.cion.al.ismo etc. Os
morfemas que constituem as palavras são formados por sílabas que, por seu
turno, são formadas por fonemas. E assim sucessivamente. Trata-se de uma
reutilização de recursos já existentes na língua, fenômeno eminentemente
ecológico.
Ao
longo da história, grande parte dos estudos tem se restringido às interações
língua-mundo (referência) e às interações entre elementos de uma estrutura. As
interações exoecológicas entre pessoas (comunicação) e entre elas e a língua só passaram a merecer a
atenção dos estudiosos em época relativamente recente. Menos atenção tem
merecido o contexto em que as interações exoecológicas se dão.
Antes
de passar em revista os precursores da Linguística Ecossistêmica propriamente
ditos, gostaria de salientar dois precursores imediatos, ou seja, aqueles que
propulsionaram nossa disciplina na década de noventa. Um deles é Alwin Fill,
que teve um papel decisivo no estabelecimento da disciplina, não só com Fill
(1987) e Fill (1993), mas também organizando congressos, simpósios, mesas-redondas
e publicando coletâneas ecolinguísticas. O outro é Adam Makkai que, além de ter
publicado um livro com a palavra ‘ecolinguística’ na capa no mesmo ano do de
Fill (Makkai 1993), já vinha propondo a abordagem ecológica aos fenômenos da
linguagem desde a década de setenta (Makkai 1972).
Falar
em relação língua-mundo ou palavra-coisa pode dar a entender, e geralmente dá,
que língua e palavra são coisas, que se relacionam com outra coisa, o mundo ou
a coisa (objeto, ou fenômeno do mundo). Na verdade, o mais correto é dizer
relação pessoa/língua-mundo, usuário/palavra-coisa. Quem entre em relação com o
mundo ou com a coisa é o falante da língua, seu usuário, abaixo designado por
"pessoa", de modo que podemos sintetizar a expressão 'interação língua
mundo' como 'interação pessoa/língua-mundo' (PL-M), e 'interação palavra-coisa'
como 'interação pessoa/palavra-coisa (PP-C). Mas, por economia usarei a
representação L-M, P-M e variantes. Como mostra a figura 1, a palavra é um
tipo de relação do indivíduo com o mundo e a língua é um padrão de interação da
população com o mundo (L = palavra; P = pessoa; M = mundo, coisa). A relação de
L com M é sempre por intermédio de P, a despeito das concepções
“construtivistas”, que afirmam que só temos acesso ao mundo via linguagem (cf.
o “entremundo” de Humboldt!).
L—P—M
Fig. 1
O
ponto de partida para a concepção de língua como interação é a própria
Ecologia, cujo conceito central é o de ecossistema, no interior do qual o
conceito central é o de interação. O conceito definidor do ecossistema
linguístico é a interação comunicativa verbal (L), não os falantes (P) nem o
espaço (T) em que se encontram. Na verdade, as reflexões filosóficas que
implicam essa visão de língua recuam à Antiguidade. Entre os gregos, começa
pelo menos com Heráclito (ca. 500 a.C.), precursor da dialética, embora
Maritain (1959: 44) tenha afirmado que seu precursor foi Sócrates. Heráclito
afirmava que tudo está sempre mudando (panta rei) e que a disputa está
na origem de tudo (pólemos patér pánton). Para ele, o mundo se
constituía de interação. Sócrates (469-399 a.C.) também é um precursor dessa
visão interacional. Seu método maiêutico consistia em ensinar dialogando, ele
era um eterno discutidor, além de ter sido o iniciador da ética, como afirma
Maritain. No Oriente, temos o taoísmo, que também recua a milhares de anos
antes de Cristo. Como mostrei em Couto (2012b), essa filosofia vê o mundo como
um eterno movimento cíclico, de modo muito parecido com o de Heráclito.
Pulando
para o final da Idade Média e o período da Renascença, temos o catalão Juan
Luís Vives (1492-1540) que, embora como voz solitária, dizia: "não me
agrada muito essa observação dos preceptores, e, se tivéssemos um povo de fala
latina ou grega, eu preferiria com ele passar um ano para aprender essa língua
a passar dez anos sob os mestres mais cultos" (Apud Coseriu 1980:
76). Para ele, para aprender uma língua era preciso interagir com seus
falantes.
Muitos
outros filósofos anteriores, contemporâneos e posteriores defendem a visão
interacionista, mesmo que implicitamente. Poderíamos alinhar ainda Baruch
Espinosa (1632-1677), Rousseau (1712-1778), Hegel (1770-1831) com sua teoria
dialética, o materialismo dialético e histórico, com Karl Marx (1818-1883) e
Friedrich Engels (1820-1895), e a neomarxista Escola de Frankfurt. Um dos mais
novos seguidores desta última, Habermas (nascido em 1929), é conhecido como proponente
da teoria da ‘ação comunicativa’ (kommunikatives
Handeln). Um pouco antes temos as Investigações filosóficas (1953)
de Ludwig Wittgenstein (1889-1951). Diferentemente do que havia feito em Tractatus
logico-philosophicus de 1921 (inteiramente metafísico), em 1953 ele propôs
uma teoria que via na linguagem um jogo, ou seja, interação.
No
âmbito dos estudos estritamente linguísticos, podemos começar pelos dois
iniciadores do estruturalismo, Ferdinand de Saussure (1857-1913) na Europa e
Leonard Bloomfield (1887-1949) nos Estados Unidos. Ambos deixam implícito que a
função da língua é a comunicação. Em Saussure, temos a famosa figura de duas
faces voltadas uma para outra interagindo, nos capítulos iniciais do Curso
de linguística geral (1916). Um dos capítulos iniciais do livro Language
(1933), de Bloomfield, é a interação (estímulo-resposta) entre Jack e Jill. No
entanto, por terem uma visão instrumental da língua reificavam-na como
instrumento de comunicação, de modo que a interação ficava apenas implícita,
não era a essência de suas teorias. Uma ilustre exceção entre os seguidores de
Saussure é Eugenio Coseriu (1921-2002). Em toda sua obra ele defendeu a tese de
que a língua existe na interação, e que a estrutura é uma abstração forjada
pelo linguista a partir dela. Usando "hablar" por interação e
"lengua" por estrutura, ela afirmou que "mientras que la
lengua se halla toda contenida en hablar, el hablar no se halla todo contenido
en la lengua" (Coseriu 1967: 287). Infelizmente, entre os estruturalistas,
ele foi um solitário defensor dessa tese.
Koch
(2004) apresenta uns cinco modelos teóricos que tratam da "interação pela
linguagem", título de seu livro. Primeiro, "a Teoria da Enunciação
tem por postulado básico que não basta ao linguista preocupado com questões de
sentido descrever os enunciados efetivamente produzidos pelos falantes de uma
língua: é preciso levar em conta, simultaneamente, a enunciação - ou
seja, o evento único e jamais repetido de produção do enunciado. Isso porque as
condições de produção (tempo, lugar, papéis representados pelos interlocutores,
imagens recíprocas, relações sociais, objetivos visados na interlocução) são
constitutivas do sentido do enunciado" (p. 12). Essa teoria tem como
precursor Mikhail Bakhtin (1895-1975) e Émile Benveniste (1902-1976). Se não
fosse a herança marxista e estruturalista, respectivamente, desse modelo, aqui
teríamos quase que uma caracterização da ecologia da interação comunicativa.
Em
seguida Koch apresenta a Teoria dos Atos de Fala, surgida na filosofia
analítica, mas "apropriada pela Linguística Pragmática", e
"tendo como pioneiro J. L. Austin, seguido por Searle, Strawson e
outros". Eles mostram que não basta a proposição lógica "a terra é
redonda". Assim teríamos apenas um ato locucionário. Em atos de fala
concretos, fica implícito, por exemplo, algo como "eu afirmo que a
terra é redonda" ou "eu pergunto se a terra é redonda",
caso em que teríamos atos ilocucionários. Por fim, uma expressão como "eu
te batizo" ocorre junto com o ato de batizar, num ato perlocucionário.
Como se vê, já se preocupa com a interação, mas de modo ainda muito tímido.
O
terceiro exemplo dado pela autora, a Teoria da Atividade Verbal, não é muito
convincente. Ela teria sido praticada na ex-URSS e na ex-Alemanha Oriental,
partindo de ideias de Vygotski, Leontiev e Luria. O quarto são os postulados
conversacionais de Grice. Eles contêm quatro máximas, ou seja, máxima da
quantidade (não diga nem mais nem menos do que o necessário), máxima da
qualidade (só diga coisas para as quais tem evidência adequada; não diga o que
sabe não ser verdadeiro), máxima da relação ou relevância (diga somente o que é
relevante) e máxima do modo (seja claro e conciso; evite a obscuridade, a
prolixidade) (p. 27). Tudo isso tem a ver com a interação comunicativa,
mas muito indiretamente.
O
quinto modelo apresentado por Koch é o que tem mais afinidades com a
Linguística Ecossistêmica. Trata-se da Análise da Conversação, originada na
sociologia interacionista, que se inspirou na Etnometodologia de Harold
Garfinkel (1917-2011). Como se pode ver em Sacks, Schegloff & Jefferson
(1978), o objetivo é estudar a estrutura da conversação como atividade social.
Alvos dessas análises eram a tomada de turno, tida por Levinson como um dos
universais da linguagem, questões como pergunta-resposta, saudação-saudação, solicitação-aceitação/recusa
etc. Não fosse a restrição ao domínio exclusivo do social, aqui teríamos o
programa da ecologia da interação comunicativa (Koch 2004: 76-77). Marcuschi (1986)
é uma boa apresentação dessa proposta.
Hoje
em dia existem outros modelos interacionistas, ou pretensamente
interacionistas, como o funcionalismo, a linguística interacional, a
linguística integracional e outros. No entanto, a maioria deles tem uma visão
instrumental da língua, considerando-a um instrumento que as pessoas usam para
se comunicar. Para a Linguística Ecossistêmica, a língua não tem por função a
expressão do pensamento nem a comunicação. Ela é a própria expressão do
pensamento e a própria comunicação, juntas e integradas. Ela é a interação
(verbal) que se dá entre cada dois membros do ecossistema linguístico.
2.
Língua na interação pessoa-mundo I: a significação
Para
começo de conversa, é necessário salientar que para a Linguística Ecossistêmica
as palavras não se relacionam com as coisas por si sós, como dão a entender
alguns estudos sobre referência. Para ela as interações língua-mundo são
mediadas pelos usuários da linguagem, em consonância com o ecossistema
fundamental da língua e como mostrado na figura 1, acima. Portanto, sempre que eu falar em interação
palavra-coisa, entenda-se relação entre ser humano e coisa utilizando a
palavra. Os estudos sobre esse tipo de interação recuam à Antiguidade, tanto
greco-latinos quanto indianos ou chineses. O famoso diálogo platônico Crátilo
é dedicado a ela. No taoísmo ela faz parte da essência das preocupações com a
linguagem, recuando ao I ching e ao Tao te ching, sobretudo o
primeiro. Isso sem falar no confucianismo, cuja ênfase central é na veracidade
do que se diz, ou seja, com a precisão da relação palavra-coisa a fim de evitar
ambiguidades, mal-entendidos e não entendidos. Esse tipo de estudo era tão
importante na Antiguidade que Ammirova et al. (1980) dedica 20 páginas a ele.
Para os autores, “a essência das teorias linguísticas dessa época consistia em
fornecer regras para o uso da língua, regras que deviam ser encaradas como
resultado de uma denominação prévia de coisas”. Eles continuam dizendo que
“essa denominação em última instância dá lugar à estrutura da língua” (p. 36).
A
questão da referência perpassa por todo período medieval, como se pode ver em
Robins (1951) e Leroy (1974), alternando-se entre “realistas (para os quais as
palavras são apenas o reflexo das ideias) e nominalistas (que creem que os
nomes foram dados arbitrariamente às coisas” (Leroy 1974: 19). A questão da
significação era tão importante que seus praticantes passaram a ser chamados de
modistae (modistas), devido à grande quantidade de estudos cujo título
começava com a expressão De modis significandi (sobre os modos de
significar).
Em
1660, vem a lume a Grammaire générale et raisonnée, de Arnauld e
Lancelot. Ela trata da linguagem de diversos pontos de vista, inclusive
morfossintáticos, mas sempre tendo a semântica por base, ou seja, a interação
língua-mundo, a referência. Essa obra racionalista deu lugar mais tarde às
chamadas ‘gramáticas filosóficas’, de que temos a de Jerônimo Soares Barbosa em
português.
Em
filosofia da linguagem, a relação palavra-coisa continua sendo objeto
privilegiado de estudo. Um bom exemplo é o estudo de Gottlob Frege “Über Sinn
und Bedeutung” (sobre o sentido e a referência), de 1892. Outro exemplo bastante
incisivo é o primeiro Wittgenstein (Tractatus logico-philosophicus,
1921, 1922), que exerceu grande influência sobre os positivistas lógicos. Nesse
contexto, deve ser lembrado também o trabalho de Bertrand Russell. O grande
problema em todos esses trabalhos é que consideram apenas a relação
palavra-coisa, como se elas existissem no ar. Inclusive a teoria do signo de
Saussure está nesse caso. Foi o mal-humorado e injustiçado pai da semiótica,
Charles Sanders Peirce (1839-1914), quem introduziu o usuário da linguagem,
mostrando que a palavra (signo) representa a coisa para alguém. Ele a
define (a palavra, ou seja, o seu signo) assim: “Um signo [...] é algo que, sob certo
aspecto ou de algum modo, representa alguma coisa para alguém” (Peirce 1972:
94). Como se vê, ele não só introduziu o usuário, mas incluiu também o
contexto. Não é para menos que a representação triádica de seu signo seja uma
das inspirações para o ecossistema fundamental da língua. Em Peirce temos uma
formulação convincente de que toda e qualquer relação da palavra com a coisa é
mediada pelo usuário, como defende a Linguística Ecossistêmica. É claro que por
mais indireta que seja a relação palavra-coisa, ela existe, tanto que já na
Idade Média Juan Luís Vives (1492-1540) dizia que "posto de lado o
significado, as palavras são coisa vazia e morta" (apud Coseriu
1980: 70). No entanto, não podemos esquecer que essa relação é mediada pelos
membros da comunidade.
3.
Interação pessoa-mundo II: o contexto
Já sabemos que por
interação “palavra-mundo” entende-se a relação dos falantes com o mundo usando
a linguagem. As primeiras reflexões sobre a linguagem viam-na como um conjunto
de palavras, cuja relação com o mundo tentavam explicar. O problema é que, como
já vimos, encaravam essa relação como se ela se desse entre a “coisa” palavra e
a coisa mundo. Ignoravam o fato de que palavras (e a própria língua) só existem no usuário, como vimos com Peirce. O contexto da interação comunicativa entre dois interlocutores e
o da língua como sistema dificilmente têm sido mencionados. Na presente seção,
pretendo fazer um pequeno apanhado do papel do espaço para a língua em geral. Vou examinar, portanto, aquilo que em Linguística Ecossistêmica se
chama T, do tripé povo (P), língua (L) e território (T). O contexto ou cenário da
interação comunicativa será examinado na seção seguinte, embora P faça parte
desse cenário.
O
máximo que podemos ver nesse sentido nos primórdios da reflexão sobre a língua
é a ideia vaga de que a “língua” dos gregos existia na Grécia; a dos romanos,
em Roma; a dos egípcios, no Egito e assim por diante. A partir de pelo menos
Johann Georg Hamann (1730-1788), cujas ideias foram retomadas por Johann
Gottfried Herder (1744-1803), começou-se a associar língua a nação, que
compreenderia povo, território e toda a cultura. Essa concepção foi
minuciosamente dissecada por Wilhelm von Humboldt (1767-1835) cujas ideias
foram, por sua vez, retomadas por Leo Weisgerber, em sua Inhaltsbezogene
Grammatik (gramática ligada ao conteúdo). Para esses autores, a língua é um
espelho da nação, ou seja, ela está ligada a algo exterior, seu meio ambiente.
Eles são precursores da teoria do campo, introduzida na Linguística por Jost
Trier (1894-1970), embora ele falasse em 'campo lexical', como se pode ver em
Trier (1966/1938). Em Schaff (1974: 15-48) há uma ótimo apanhado crítico dessa
tradição. Nos estados Unidos, ideias parecidas foram veiculadas na tradição que
vai de Franz Boas (1858-1942), passando por Edward Sapir (1884-1939), autor do
primeiro ensaio sobre língua e meio ambiente, a Benjamin Lee Whorf (1897-1941).
Como em Couto (2007: 56-59) há uma discussão relativamente detalhada dessa
tradição, remeto a(a) leitor(a) a essa publicação que, aliás, contém muitas
outras informações sobre a história da Ecolinguística.
A
ideia de língua relacionada ao espaço físico (o T linguístico-ecossistêmico)
aparece de modo bastante enfático na teoria das ondas (Wellentheorie) do
comparatista Johannes Schmidt (1843-1901). Contrariando seu mestre August
Schleicher (1821-1868), de que as línguas evoluem de forma arborescente (por
anagênese ou por cladogênese), ramificando-se como proposto na teoria de
Charles Darwin (1809-1882) para a biologia, a teoria das ondas de Schmidt
defende a ideia de que as inovações linguísticas se propagam no espaço como
ondas concêntricas a partir de um ponto em que se joga uma pedrinha. A partir desse ponto, as ondas vão se propagando centrifugamente. Essa
teoria continua válida pelo menos parcialmente.
O
polêmico linguista soviético Nikolas Jakolaievitch Marr (1864-1934), quando não
por ser marxista, era de opinião de que a língua estava inextricavelmente
ligada ao meio (povo e território), de modo que ela é um reflexo desse meio.
Reconheceu que cada segmento social tem sua linguagem específica. Juntando isso
à asserção de que a língua comum é uma ficção, temos aí o germe da distinção
entre ‘comunidade de língua’ e ‘comunidade de fala’. Finalmente, Marr se
interessou também pelo contato de línguas e a “hibridização linguística”
(contato de línguas), tudo relacionado ao espaço.
A
relação língua-espaço (território) foi explorada de modo minucioso pela Dialetologia
e por sua parente Geografia Linguística. Até aproximadamente o século XVIII,
estudava-se a língua como um todo normativo, frequentemente ligado a um estado,
diante da necessidade de se procurar uma língua nacional comum frente aos
dialetos. Com a Dialetologia, começa a surgir um interesse pelos dialetos
regionais. Segundo Malmberg (1971: 82), podemos distinguir dois métodos de
pesquisa dialetológicos, sendo "o primeiro [...] a mera descrição do
dialeto que chegava normalmente a monografias dialetais". "O segundo
método empregado [...] foi o que se chamou de geografia linguística ou
dialetal". Daí o surgimento dos atlas linguísticos, iniciados com o alemão Georg Wenker
(1852-1911) por volta de 1881. Seus mapas mostravam que cada palavra tem suas
fronteiras, contestando o determinismo das leis fonéticas dos neogramáticos.
A
Geografia Linguística deslanchou definitivamente com as pesquisas de Jules
Gilliéron (1854-1926) e seu auxiliar para pesquisa de campo Edmond Edmont
(1849-1926). De 1902 a 1910, eles produziram o Atlas linguistique de la
France, o primeiro do gênero. Se os inquéritos de Wenker se preocupavam com
fenômenos fonéticos à la neogramáticos, os de Gilliéron recaíam sobre as
palavras das comunidades regionais. Notaram que a partir de certos centros
(Paris, Florença) as inovações expandem-se na direção da periferia, em
consonância com a teoria das ondas de Schmidt. Como as inovações chegavam à
periferia muito lentamente, ela era, portanto, conservadora. A relação da
língua com o espaço estava tão estabelecida que se passou a usar a terminologia
da Geografia (geografia linguística, estratigrafia, isoglossa etc.). Ficou
claro que "não se pode estudar uma língua cientificamente e utilmente sem
conhecer o meio em que a língua é escrita e falada", "a linguagem
humana não pode ser isolada do meio em que é utilizada". Isso está em
perfeita sintonia com os postulados da Linguística Ecossistêmica.
No
que tange à relação palavra-coisa, surgiu a escola das Wörter und Sachen
(palavras e coisas), tendo à frente Rudolf Meringer (1859-1931) e Hugo
Schuchardt (1842-1927). De modo natural, a Etnografia começou a ajudar nas
pesquisas dialetológicas. Destaca-se o estudo da toponímia, que demandava
conhecimentos linguísticos, históricos e do meio ambiente. Surgiram igualmente
estudos de onomasiologia, aqueles que relacionam a coisa à palavra que a
designa. Esses estudos tiveram desdobramento, entre outros, na Neolinguística
(ou linguística areal) italiana, com Matteo Bartoli (1873-1946), Giulio Bertoni
(1878-1942), Giuliano Bonfante (1904-2005) e Vittore Pisani (1899-1990) à
frente. Influenciados também pela filosofia de Benedetto Croce e a de Wilhelm
von Humboldt, eles se dedicaram ao estudo da distribuição das línguas e
dialetos pelo espaço, antecipando o que o pai da Ecolinguística, Einar Haugen,
faria várias décadas mais tarde. Aí se incluem questões como contato de
línguas, difusão dialetal, ausência de fronteiras rígidas entre línguas e
dialetos, o que aproxima mais uma vez a dialetologia da noção de ecossistema,
que é delimitado pelo observador.
Enfim,
com a dialetologia e a geografia linguística a relação L-T veio à tona de modo
flagrante, embora não se tenha tido consciência de que essa relação se dá
sempre via população (P), como Peirce mostrou pioneiramente e como é defendido pela a
Linguística Ecossistêmica.
O
primeiro linguista no sentido moderno do termo que tratou da relação
língua-meio ambiente foi Edward Sapir (1888-1939). Em 1911, ele
pronunciou uma conferência sob o título "Language and environment",
na Associação Antropológica Americana. O texto
saiu no American anthropologist 14 p. 226-242 (1912) e, posteriormente,
nos Selected Writings of Edward Sapir in language, culture and personality
(cf. Mandelbaum 1949). Em
1969, Joaquim Mattoso Câmara Jr. traduziu o texto e o incluiu na coletânea
Sapir (1969), sob o título de "Língua e ambiente", talvez pelo fato
de a expressão "meio ambiente" ainda não ser muito popular na década
de sessenta. Se Haugen é o "pai" da Ecolinguística, Sapir é o
"avô". De qualquer forma, ele é um precursor da Ecolinguística,
sobretudo da Linguística Ecossistêmica.
Por
fim, gostaria de mencionar mais dois autores que sempre estudaram a língua no
contexto em que ela existe. O primeiro é o inglês John Rupert Firth (1890-1960).
Ele a via sempre como comportamento no "contexto da situação". Michael
Halliday foi seu aluno e formulou sua Linguística Sistêmico-Funcional partindo
de suas ideias. A segunda é a romena Tatiana Slama-Cazacu, com seu livro de
1959 Limbaj si context, traduzido para o francês em 1961 como Langage
et contexte. Em Couto (1999: 98-99) há um apanhado geral de sua
contribuição para a ideia de língua relacionada ao contexto em que é usada.
Voltando
ao conceito de 'ecossistema linguístico' em si, sabemos que ele tem sua origem
imediata no de 'ecossistema biológico'. Este, por seu turno, foi proposto pela
primeira vez em Tansley (1935), embora a história da Ecologia recue até bem
antes disso. Deixando de lado as reflexões dos gregos (Aristóteles, Teofrasto),
um dos primeiros pioneiros da Ecologia é Antoni van Leeuwenhoek
(1632-1723), o primeiro a estudar as 'cadeias alimentares', e Carl Linnaeus
(1707-1778), ou Lineu, que examinou a 'economia da natureza' e criou o sistema
binominal de nomeação de espécies vegetais, sendo que o primeiro nome designa o
gênero e o segundo a espécie, como Psidium guajava L, nome da goiabeira.
Karl Möbius (1825-1908) desenvolveu o conceito de 'comunidade ecológica',
também conhecida como 'biocenose'. Ernst Haeckel (1834-1919) criou o conceito
de 'ecologia' em 1866. Enfim, a história de Ecologia está intimamente associada
à da Biologia.
Uma
outra fonte para o conceito de ecossistema é o de Gestalt em Psicologia, que vai de aproximadamente 1910 a 1967. A Gestalt, por sue vez, foi influenciada
pela teoria do campo da física, tanto que seu seguidor Wolfgang Köhler
(1887-1941) fora aluno de Max Planck. O gestaltista heterodoxo Kurt Lewin
(1890-1947) enfatizava o comportamento humano em seu contexto físico e social.
Ele retomou o conceito de Lebensraum (campo psicológico, espaço vital)
proposto originalmente pelo criador da geografia humana Friedrich Ratzel
(1844-1904). A despeito do mau uso que os nazistas fizeram dele, como Georg Schmidt-Rohr (1890-1945), trata-se de um conceito muito interessante. De
acordo com Lewin, o espaço vital inclui não só o presente, mas também o passado
e o futuro que possam influenciar a pessoa, o que lembra a dimensão temporal da
visão ecológica de mundo. Segundo Schultz & Schultz (2009: 319),
"Lewin postulou um estado de equilíbrio entre a pessoa e o seu ambiente.
Quando esse equilíbrio é perturbado, surge uma tensão [...] que leva a algum
movimento, numa tentativa de restaurar o equilíbrio". Para Lewin,
"assim como o indivíduo e o seu ambiente formam um campo psicológico,
assim também o grupo e o seu ambiente compõem um campo social" (p. 320).
Lewin propôs a fórmula C = f(PM), que diz que o comportamento (C) é função (f)
da pessoa (P) em seu meio (M).
É
importante ressaltar que os geltaltistas não separam corpo e mente rigidamente,
considerando-os como parte de um todo. De novo, trata-se de uma ideia que está
em perfeita sintonia com a visão ecológica de mundo. Em vez de serparar,
junta-se, de modo abrangente, holístico. O ecolinguista Wilhelm Trampe mostrou
que Albert Bandura (nascido em 1925) retomou essa fórmula e a ampliou, "na
medida em que apresenta o comportamento como grandeza identificável e vê um
inter-relacionamento entre as três grandezas P, M e C" (Trampe 1990: 190).
Trampe representa isso da seguinte forma:
P
/ \
C-----M
Fig. 2
Essa figura
lembra o signo triádico de Peirce (1972: 94), sobretudo na representação de
Ogden & Richards (1972: 32), mostrada na figura 3, em que S é signo, R
representante e I interpretante.
I
/ \
S----R
Fig. 3
Fica
patente que essas relações triádicas são precursoras do ecossistema fundamental
da língua, fulcro da Linguística Ecossistêmica, que contém em si três outros
ecossistemas linguísticos mais específicos, que são o ecossistema natural, o
mental e o social. A representação do ecossistema fundamental da
língua é a que se vê na figura 4. Seus componentes são os mesmos da figura 1,
bastando apenas substituir o M de mundo por T de território e a representação
linear pela triangular.
P
/ \
L----T
Ecossistema Fundamental da Língua
Fig. 4
De
maneira explícita o ecossistema fundamental da língua foi proposto inicialmente
em meados da década de noventa do século passado, inclusive com a representação
triangular, embora a ideia em si recue a Couto (1986). Em Couto (1998: 2) ele
apareceu pela primeira vez em forma escrita, fato que se repetiu de modo mais
desenvolvido em Couto (1999: 91, 115-124). Nesta segunda monografia já se
falava em "ecolinguística" e "ecologia linguística", outro
nome para Ecolinguística, na Linguística Ecossistêmica. Por fim, a ideia foi
desenvolvida em relativa profundidade em Couto (2007: 89-108), o primeiro
manual de introdução à Ecolinguística a ser publicado em português. Em seguida vieram
a lume diversos livros e artigos desenvolvendo o ecossistema linguístico,
inclusive o natural, o mental e o social.
4.
Língua como interação
Sintetizemos
a ideia de língua como interação, integrando os dois tipos fundamentais de
interação em um todo, como na figura 5, e, em seguida as interações
endoecológicas e as interações exoecológicas. A interação pessoa-mundo
(referência) está representada por p-A, no caso, "A" de assunto de
que os interlocutores falam. As interações pessoa-pessoa (comunicação) estão
representadaa por p1--p2, ou seja, quaisquer
duas pessoas da população.
\ /
\ /
A
Língua como interação
Fig. 5
Seguindo
os índices alfabéticos, nota-se que a interação começa com o indivíduo (p1)
percebendo um acidente ou fenômeno do mundo, aqui representado por A (linha oblíqua esquerda).
No caso, geralmente p1 pode ter outros contatos com o fenômeno. Se
ele tiver que se reportar a esse fenômeno a outra pessoa (p2), terá
que dar um nome a esse fenômeno (linha oblíqua da direita). p2, por seu turno,
entenderá o que p1 lhe disse dirigindo-se pelo menos mentalmente ao
mesmo fenômeno. Se a interação tiver continuidade, p2
se transformará em falante a propósito do assunto iniciado por p1
e responderá, momento em que p1 certamente evocará de novo o
assunto da interlocução e assim segue o fluxo interlocucional. A
interação terá êxito, ou seja, haverá entendimento se a relação de p2
for pelo menos aproximadamente a mesma de p1. Do contrário, haverá
incomunicação.
Da
perspectiva ecolinguística, sobretudo da da Linguística Ecossistêmica, as
pessoas se comunicam referindo-se a algum aspecto do mundo e referem-se a
aspectos do mundo comunicando-se. Mesmo quando o assunto da interação
comunicativa seja algo mental, social ou até abstrato ou fictício. A abstração
é “abstraída” de algo e a ficção nunca é 100% fictícia. Do contrário, não
haveria entendimento entre os interlocutores.
4.1.
Interações endoecológicas
A
Ecolinguística e, com mais razão, a Linguística Ecossistêmica perfilha a visão
ecológica de mundo (VEM), motivo pelo qual se interessa pela língua sob todos
os pontos de vista. Nada na língua lhe é estranho. Ela se interessa não apenas
por questões exoecológicas, como contato de línguas, relações entre língua e
usuários, entre usuários-língua e espaço, questões político-ideológicas
embutidas nos discursos etc. Ao linguista ecossistêmico interessam também as
interações endoecológicas, estruturais.
Desde
a década de sessenta existe um modelo de análise linguística que trata de
fenômenos estruturais da perspectiva das interações. Trata-se da Gramática
Estratificacional, de Sydney M. Lamb que, infelizmente, foi apagada pelo poder
político da então Gramática Gerativo-Transformacional de Noam Chomsky. Foi uma
pena, pois a teoria de Lamb estava perfeitamente no espírito da nova visão de
mundo introduzida pela Teoria da Relatividade e pela Mecânica Quântica. A de
Chomsky ainda estava no nível da Mecânica Clássica de Newton. A teoria de Lamb
atualmente é chamada de Linguística Neurocognitiva, que dispõe de uma ótima
página na internet. A versão anterior dessa teoria dispõe de uma pequena
apresentação em português em Couto (1982). O ecolinguista Adam Makkai era um de
seus seguidores. Seus textos aqui mencionados são
ecolinguístico-estratificacionais.
Comecemos
pelo léxico. Mais do que qualquer outro componente da língua, ele se apresenta
eminentemente em forma de redes. Os chamados ‘campos lexicais’ e ‘campos
semânticos’ já apontam nessa direção. Quando olhamos para a representação das
‘relações paradigmáticas’ de Saussure, temos mais uma comprovação de que o
léxico está organizado em forma reticular. Se mencionarmos a qualquer falante
de português palavras como angico,
peroba, aroeira, ... e pedirmos que continue a lista, ele certamente
continuará enumerando nomes de árvores. Mentalmente, o vocabulário de nossa
língua está organizado por ‘campos semânticos’.
Na
morfologia já há alguns poucos estudos que mostram que a derivação e a
composição, por exemplo, existem para aumentar o poder referencial-comunicativo
da língua. Além do mais, toda inovação morfológica começa na interação
comunicativa, como qualquer parte da língua. Inclusive questões sintáticas
podem (e devem) ser abordadas ecolinguisticamente. Por exemplo, já foi mostrado
que a concordância (nominal e verbal) existe para que falante e ouvinte saibam
quem faz o que a que(m). Não se trata apenas de relações lógicas, como dão a
entender as teorias formalistas. Estratégias como a relativização existem para
facilitar a tarefa do falante, evitando repetições desnecessárias, segundo o
princípio do menor esforço. Em Couto (2007: 157-218) já há algumas sugestões de
estudos linguístico-endoecológicos.
De acordo com os antigos, as relações endoecológicas
emergiram das exoecológicas. Para eles, “os homens agora procuravam, como único
método legítimo de pesquisa, derivar e justificar regras da gramática de
sistemas de teorias lógicas e metafísicas sobre a natureza da realidade”
(Robins 1980: 75). O problema é que eles partiam da ideia de relações abstratas,
como fazia Hegel, não de relações concretas entre fenômenos, como faziam Marx e
Engels. Na visão dos dois últimos, e da Linguística Ecossistêmica, a
endoecologia é, ao contrário, tributária da exoecologia, a comunicação é
primária, a significação secundária. Essa é também a posição do filósofo da
linguagem e ecolinguista alemão Peter Finke, que também parte de
relações naturais efetivas, não de abstrações.
4.2.
Interações exoecológicas
As relações exoecológicas têm constituído o objeto
quase exclusivo da Ecolinguística desde seu surgimento. O próprio Haugen havia
apresentado como programa para a disciplina questões como contato de línguas,
bi- e multilinguismo, política e planejamento linguístico etc. Os trabalhos que
surgiram em torno do grupo de Graz (Áustria), tendo Alwin Fill como líder, se
dedicam basicamente a análises de discursos da perspectiva da teoria de Norman
Fairclough. No entanto, há outras linhas de pesquisa a que a Linguística
Ecossistêmica tem se dedicado. Existe a Etnoecologia Linguística, que
investiga, via linguagem, a relação que os membros de pequenas comunidades
mantêm com o meio circundante. Temos os estudos toponímicos, para os quais a
visão ecolinguística é um ótimo ponto de partida. E assim por diante.
As questões tratadas pelos primeiros ecolinguistas
(contato de línguas etc.) também fazem parte da agenda da Linguística
Ecossistêmica. Ela se ocupa das relações língua-mundo, língua-usuário sob todos
os aspectos pelos quais possam aparecer. Afinal, ela é um ponto de vista
unificado a partir do qual se pode estudar todo e qualquer fenômeno
linguístico.
5.
A Linguística Ecossistêmica
Já
sabemos que a Linguística Ecossistêmica vê a língua essencialmente como
interação. Por isso valeria a pena fornecer mais alguns detalhes sobre sua emergência.
Vou falar dela muito brevemente e apenas da perspectiva histórica, uma vez que
ela está relativamente bem discutida nas demais postagens aqui presentes. A
ideia do ecossistema fundamental da língua começou em Couto (1986), em que
língua ficou intimamente associada ao povo que a fala, de que é dependente,
donde a relação L-P. Em 1995, em textos inéditos, ela foi elaborada um pouco
mais mediante o acréscimo do território do povo, tendo o todo recebendo o nome de
'comunidade', inclusive aparecendo com a representação triangular comum na
atualidade, como na figura 6.
L
/ \
P----T
Comunidade
A
única diferença é que, na figura de 1995, língua (L) se interpõe entre
população (P) e território (T), o que vai contra a posição da Linguística
Ecossistêmica de que a língua existe na população, com o que toda relação dela
com T é mediada por P. Em Couto (1998), a ideia foi desenvolvida ainda mais,
mas o modelo continuou sendo chamado de 'comunidade' e L continuou entre P e T.
O mesmo se dá em Couto (1999), mas os três
componentes (L, P, T) já são discutidos em relativo detalhe. Em Couto (2000) já
apareceu a expressão 'ecologia fundamental da língua', ao lado de 'comunidade'.
Em Couto & Silva (2001), reaparece a denominação 'ecologia fundamental da
língua', o que é repetido em Couto (2001a),
Couto (2001b), Couto (2002a) e (2002b).
A
seguir, apresento em forma tabelar a evolução do modelo.
- Couto (2003): Juntamente com
Couto (2001a), este texto discute minuciosamente a questão da interação,
partindo da pré-linguística, que pode levar a um dos conceitos centrais da
Linguística Ecossistêmica, a comunhão. Comunhão é uma condição prévia para que haja comunicação. O ensaio inclui um histórico desse
conceito.
- Couto (2005): Salienta a
importância de se fazer distinção entre 'comunidade de língua' e 'comunidade de
fala'.
- Couto (2007): Primeiro manual de introdução aos estudos
ecolinguísticos publicado em português. Ainda não usa a denominação
'Linguística Ecossistêmica', mas já é inteiramente ecossistêmico. Mostra que a
Ecolinguística deve tratar não só de questões de discurso, mas de todo e
qualquer aspecto do fenômeno linguístico, inclusive questões estruturais, como
na endoecologia de Makkai (1993).
- Couto (2008): Retoman os conceitos de comunidade de fala versus
comunidade de língua, mostra que o que se chama de contato de línguas é, na
verdade, contato de povos e respectivas línguas. Propõe que nesse processo o
mais importante é como se dá a interação comunicativa, não interferências de
uma língua na outra ou vice-versa.
-
Couto (2009a): Desenvolve os ecossistemas natural, mental e social da língua,
com respectivos meios ambientes. Alarga as possibilidades de abordagem
ecolinguística ao contato de línguas, com diversos estudos de caso.
-
Couto (2009b): Desenvolve
os três ecossistemas linguísticos em relativo detalhe pela primeira vez.
-
Couto (2012a): Mostra a importância de se retomarem os conceitos dialetológicos
de 'onomasiologia' e 'semasiologia' nos estudos de semântica.
-
Couto (2012b): Prova que a filosofia taoísta é também ecológica, discutindo
diversas questões concretas e propondo uma semântica taoísta.
-
Couto (2013a): Apanhado geral da Ecolinguística até a data, acenando pela primeira vez para a
possibilidade de uma 'análise do discurso ecológica'.
- Couto (2013b): Mostra pela
primeira vez que a interação comunicativa está sujeita a regras, as 'regras
interacionais" (afins da análise da conversação) e de 'regras sistêmicas',
mostrando que estas são apenas auxiliares daquelas. Com isso, um enunciado pode
parecer truncado, fragmentado, aparentemente caótico, mas estar perfeitamente em
consonância com os hábitos interacionais da comunidade de fala em que ocorre.
Isso porque se entende 'regra' no sentido de 'regra-regularidade' (coletivamente aceita), não no de
'regra-regulamento (imposto de cima para baixo).
-
Couto (2013c): Primeira apresentação relativamente sistemática da Análise do
Discurso Ecológica (ADE), como extensão da Linguística Ecossistêmica para estudar
questões textuais/discursivas. Ele é anterior a Alexander & Stibbe (2014)
de um ano. Disponível apenas em:
-
Couto[Elza] (2013): Pela primeira vez, introduz o tópico 'metodologia' na
ecolinguística, salientando que só pode tratar-se de uma 'multimetodologia',
pois é parte de algo válido para todas as ciências ecológicas, a
'ecometodologia'.
-
Couto (2014b):
Desenvolve de modo mais sistemático a Análise do Discurso Ecológica, inclusive
com alguns exemplos de análise.
Não
tive a pretensão de enumerar tudo que a Linguística Ecossistêmica tem feito e
pode fazer. Quis apenas dar alguns exemplos do que se pode fazer a partir dela.
Entre outros estudos já feitos, temos alguns sobre as preposições, sobre as
conjunções (neste blog), sobre a concordância nominal e verbal etc. A
pesquisa continua, com diversos estudos, encontros, palestras, artigos, cursos
etc. É uma área nova, mas bastante efervescente. Vemos novos interessados
surgirem a todo momento em diversas universidades brasileiras. Para mais
informações, pode-se consultar a postagem Linguística Ecossistêmica (em
português e em inglês).
Só
gostaria de acrescentar que a Ecolinguística Dialética de Odense (Dinamarca) e
as 'três ecologias de Felix Guattari tiveram uma forte influência no surgimento
dos três ecossistemas linguísticos (natural, mental, social). As 'quatro
ecologias' do filósofo e ecologista brasileiro Leonardo Boff também influíram
aí, e, adicionalmente, na emergência do 'ecossistema fundamental da língua',
mediante sua 'ecologia integral'. Outros autores que apresentaram ideias apropriadas posteriormente pela Linguística Ecossistêmica são Charles Peirce,
Kurt Lewin, Albert Bandura, Peter Finke, Wilhelm Trampe, alguns deles já mencionados acima.
5.
Observações finais
A
Ecolinguística representa uma virada na história dos estudos linguísticos. Ela
fez muitos cientistas desviarem o olhar da língua vista como coisa, como um conjunto
de regras pairando no ar, mesmo que passíveis de estudo sistemático. Ela redirecionou
seu olhar para a visão ecológica de mundo (VEM), defendida enfaticamente por
Fritjof Capra, como se vê, entre diversas outras publicações, em Capra (1998).
É bem verdade que o status quo
acadêmico não tem levado a VEM a sério. Para muitos autores que a aceitam, porém, a
Ecolinguística deve ser encarada como um novo paradigma para o estudo dos
fenômenos da linguagem.
Tanto
tudo isso é verdade que praticamente nada na Ecolinguística surgiu ex nihilo. Mesmo seu ramo mais recente,
a Linguística Ecossistêmica, tem precursores históricos em todos os níveis e
setores. A começar do próprio conceito de ‘ecossistema linguístico’, que tem a
mesma origem que o ecossistema biológico, uma vez que ambos constam de uma
população (P), o território (T) dessa população e as interações que se dão
entre os membros da população e entre eles e o território ou o mundo (L). A única
diferença, se é que se trata de diferença, é que as interações do ecossistema
linguístico são chamadas de ‘língua’, enquanto que as do ecossistema biológico
são chamadas de ‘interação’ mesmo ou, às vezes, de ‘comportamento’. Aliás, para
os behavioristas a língua é basicamente comportamento.
Ecossistêmico-linguisticamente, ela o é pelo menos parcialmente. Por fim, por
ser ecológica, a Ecolinguística está em sintonia com a nova visão de mundo
introduzida pela Teoria de Relatividade e pela Mecânica Quântica, superando
assim a visão cartesiana, estática da Mecânica Clássica.
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