sábado, 4 de outubro de 2014

Ecossistema Integral da Língua

Provavelmente devido a nossa formação no contexto da filosofia que vem de Aristóteles, passando por Descartes e Newton, temos dificuldades para lidar com o imponderável, aquilo que não se deixa quantificar. Acreditamos que as teorias são modelos perfeitos, acabados e inapeláveis para explicarmos a realidade. Como devem ser perfeitos, esses modelos são imutáveis, não se pode alterá-los, muito menos contestá-los. Infelizmente, porém, veremos que não é nada disso que acontece. Nenhum modelo teórico existente até o momento, nem vislumbrável a curto prazo, é infalível e, portanto, intocável. O que a ciência tenta fazer é conseguir uma visão o mais aproximada possível de seu objeto de estudo. Por ser aproximada, essa interpretação pode ser adaptada, melhorada e até refutada por outras mais recentes, que representam o estágio a que o conhecimento chegou.
Como disse Richard Dawkins, em seu livro O gene egoísta (São Paulo: Cia. das Letras, 2008), "a contribruição mais importante que um cientista pode fazer não é propor uma nova teoria ou revelar um novo fato, mas descobrir um novo modo de olhar para as teorias ou os fatos antigos" (p. 22-23). Ainda segundo Dawkins, uma mudança de visão pode produzir algo que é mais grandioso do que uma teoria". Enfim, "uma nova maneira de ver [...] pode representar uma contribuição original à ciência" (p. 23).   
O conceito de 'ecossistema fundamental da língua' é o primeiro a surgir na versão brasileira da Ecolinguística chamada de Linguística Ecossistêmica. O seu germe se encontra no livrinho O que é português brasileiro (São Paulo: Brasiliense, 1986) e em investigações feitas nos anos de 1997 a 1999, como se pode ver na Introdução de Couto, Couto, Araújo e Albuquerque (a sair), mas a primeira apresentação sistemática e formal foi feita em Couto e Silva (2001), sob o nome de "ecologia fundamental da língua". Na postagem número 13 deste blog, temos uma apresentação relativamente bem detalhada do ecossistema fundamental da língua. Como se pode ver nessa postagem, trata-se de um dos conceitos centrais da Linguística Ecossistêmica. O que eu gostaria de discutir aqui é uma questão espinhosa, que revela a dificuldade que temos para expressar em linguagem comum novos achados científicos, como discuti também em relativo detalhe na postagem número 15, sob o título de "A língua não é uma coisa, é motraive". A questão é espinhosa porque vou propor uma mudança de termos, embora não a de conceito. Estou propondo que, doravante, em vez de 'ecossistema fundamental da língua' e respectivo 'meio ambiente fundamental da língua' passemos a falar em ECOSSISTEMA INTEGRAL DA LÍNGUA e respectivo MEIO AMBIENTE INTEGRAL DA LÍNGUA. O objetivo da presente postagem é justificar essa mudança de terminologia, coisa de que as pessoas não gostam muito, no contexto dessa visão moderna de ciência.
A ideia de algo "fundamental", no fundo no fundo, lembra a visão de mundo da mecânica clássica, de Descartes e de toda a linha de pensamento que vem desde pelo menos Aristóteles, ou seja, aquele pensamento linear, de que as coisas e fenômenos são compostos de partes, nas quais podem ser decompostos. Isso implica que juntando essas partes, chagamos ao todo. Nesse caso, o "fundamental", o "básico" e "irredutível" seriam as partes mínimas. Pois bem, a visão ecológica de mundo (VEM), que começou com a Teoria de Relatividade e a Mecânica Quântica e foi reforçada com a emergência da Ecologia, para não falar em teorias mais recentes (do caos, dos sistemas complexos, teoria da matriz S etc.) considera o todo como maior do que o conjunto das partes que o compõem. O todo não é como um relógio que pode ser montado e desmontado, continuando um relógio como antes. Essa visão não funciona no caso dos sistemas vivos nem no nível do infinitamente grande e do infinitamente pequeno.
Uma das teorias físicas mais recentes, a Hipótese Bootstrap (Matriz do Espalhamento, Scattering Matrix ou Teoria da Matriz S), de Geoffrery Chew, "unifica a mecânica quântica e a teoria da relatividade numa teoria que abrange todos os aspectos quânticos e relativistas da matéria subatômica em sua totalidade e, ao mesmo tempo, representa um rompimento radical com toda a abordagem ocidental à ciência básica" (Capra 1995: 41). "Essa filosofia bootstrap não só abandona a ideia de blocos de construção fundamentais da matéria, como nem sequer admite entidade fundamental alguma – nenhuma constante, lei ou equação fundamental. O universo material é concebido como uma rede ou teia dinâmica de eventos inter-relacionados. Nenhuma das propriedades de qualquer parte dessa rede é fundamental; todas decorrem das propriedades das outras partes, e a consistência global de suas inter-relações determina a estrutura da rede toda" (p. 42).
Isso foi complementado com o surgimento da Ecologia, cujo conceito central é o de ecossistema. Como disse Edgar Morin, "o ecossistema [...] não tem nenhum centro de controle, [....] nenhuma cabeça reguladora, [...] nenhum programa genético. Seu processo de autorregulação integra a morte na vida e a vida na morte" (Morin, 2007: 27). Não é possível decompô-lo em seus componentes “população de organismos”, “habitat” e “interações”. Separadamente, essas categorias nada têm de ecológico, assim como a água é muito diferente do que a mera soma de “hidrogênio” e “oxigênio”. O todo é uma grande rede de interações. Essa ideia foi complementada por Capra em diversas publicações, como Capra (2008: 241-248). Em Capra (1998) ele apresenta cinco categorias dessa nova visão da ciência, que ele chama de Novo Paradigma, frente ao velho (cartesiano-newtoniano). Vejamo-las:
1. Mudança da parte para o todo
No velho paradigma, acreditava-se que em qualquer sistema complexo a dinâmica do todo poderia ser compreendida a partir das propriedades das partes.
No novo paradigma, a relação entre as partes e o todo é invertida. As propriedades das partes só podem ser entendidas a partir da dinâmica do todo. Em última análise, não há partes, em absoluto. Aquilo que chamamos de parte é meramente um padrão numa teia inseparável de relações.
2. Mudança de estrutura para processo
No velho paradigma, pensava-se que havia estruturas fundamentais, e também que havia forças, e mecanismos por cujo intermédio estas interagiam, dando, dessa forma, nascimento ao processo.
No novo paradigma, cada estrutura é vista como a manifestação de um processo subjacente. Toda a teia de relações é intrinsecamente dinâmica.
3. Mudança de ciência objetiva para "ciência epistêmica"
No velho paradigma científico, acreditava-se que as descrições eram objetivas, isto é, independentes do observador humano e do processo de conhecimento.
No novo paradigma, acredita-se que a epistemologia – a compreensão do processo de conhecimento – deve ser incluída explicitamente na descrição dos fenômenos naturais.
4. Mudança de construção para rede como metáfora do conhecimento
A metáfora do conhecimento como construção – leis fundamentais, princípios fundamentais, blocos de construção fundamentais etc. – tem sido usada na ciência e na filosofia ocidentais por milênios.
Durante as mudanças de paradigma, sentiu-se que os alicerces do conhecimento estavam se desagregando.
No novo paradigma, essa metáfora está sendo substituída pela metáfora da rede. Na medida em que percebemos a realidade como uma rede de relações, nossas descrições formam, igualmente, uma rede interconexa representando os fenômenos observados.
Nessa rede, não haverá hierarquias nem alicerces.
A mudança de construção para rede também implica o abandono da ideia de que a física é o ideal por cujo intermédio todas as outras ciências são modeladas e julgadas, e a principal fonte de metáforas para descrições científicas.
5. Mudança de descrições verdadeiras para descrições aproximadas
O paradigma cartesiano baseou-se na crença de que o conhecimento científico poderia alcançar a certeza absoluta e final.
No novo paradigma, se reconhece que todos os conceitos, todas as teorias e todas as descobertas são limitadas e aproximadas.
A ciência nunca poderá fornecer uma compreensão completa e definitiva da realidade.
Os cientistas não lidam com a verdade (no sentido de correspondência exata entre a descrição e os fenômenos descritos); eles lidam com descrições limitadas e aproximadas da realidade (Capra 1998: 11-13).
Para mais discussões sobre esse assunto, ver Chopra & Mlodinow (2012: 297-312), entre muitos outros.
Diante do que acaba de ser visto, parece incoerente continuarmos usando a expressão "ecossistema fundamental da língua” e “meio ambiente fundamental da língua". Felizmente, temos uma ótima saída. Sem deixar de lado o conceito que ela expressa, podemos nos valer do termo "integral" de Leonardo Boff. Como exposto em Boff (2012), esse ecologista propõe quatro ecossistemas, que ele chama de "ecologias". São elas a “ambiental” (correspondente ao nosso ecossistema natural da língua), a “política/social” (equivalente ao nosso ecossistema social da língua) e a “mental” (que aponta para o nosso ecossistema mental da língua). Abrangendo as três, ele propõe a "ecologia integral". Pois bem, o que proponho agora é que em vez de 'ecossistema fundamental da língua' e respectivo 'meio ambiente fundamental da língua' passemos a chamar esse ecossistema totalizante de ECOSSISTEMA INTEGRAL DA LÍNGUA (EIL), com respectivo MEIO AMBIENTE INTEGRAL DA LÍNGUA (MIL).
Não há nenhuma perda conceitual nessa mudança de termos. Onomasiologicamente, podemos dizer que a coisa designada continua a mesma. O que muda é a "palavra" que a designa. Há diversas vantagens nessa mudança de terminologia. A primeira é justamente o fato de se evitar a ideia, refutada pela ciência moderna, de que há fundamentos, blocos de construção fundamentais e não redes. A segunda é o fato de a ideia de "integral" implicar que esse ecossistema integra os demais, que eles estão contidos nele. Com isso evitamos ir contra princípios da ciência moderna, aí inclusa a Ecologia, e inserimos a Linguística Ecossistêmica na visão ecológica de mundo para valer, sem concessões.
Repito, as pessoas que seguem determinada teoria desejam tacitamente que ela não mude. Eu me lembro das reclamações que ouvi ao longo das diversas mudanças por que passou a gramática gerativa. Mas, como disse Noam Chomsky, a ciência é dinâmica. Ele chega ao ponto de dizer que quando uma revista publica determinado artigo ele já está defasado, para não falar de livros. A seção mais atualizada, ainda em sua opinião, é a de cartas dos leitores. A Linguística Ecossistêmica não é exceção. Ela também é dinâmica, evolui. É chegado o momento de deixarmos de falar em ‘ecossistema fundamental’, e substituí-lo por ‘ecossistema integral da língua’. Com isso, temos agora os seguintes ecossistemas:
1) Ecossistema Natural da Língua, contendo o Meio Ambiente Natural da Língua;
2) Ecossistema Mental da Língua, contendo o Meio Ambiente Mental da Língua;
3) Ecossistema Social da Língua, contendo o Meio Social da Língua;
4) Ecossistema Integral da Língua, contendo o Meio Ambiente Integral da Língua.
O EIL pode ser encarado da perspectiva da Comunidade de Fala e da da Comunidade de Língua, exatamente como já exposto em postagens anteriores, como a de número 15.  
Isso não muda em absolutamente nada o arcabouço epistemológico de nossa ciência, apenas aperfeiçoa sua terminologia. 

Referências
Boff, Leonard. 2012. As quatro ecologias: Ambiental, política e social e integral. Rio de Janeiro: Mar de Ideias.
Capra, Fritjof. 1995. Sabedoria incomum. São Paulo: Cultrix, 10ed.
_______. 1998. Pertencendo ao universo: Explorações nas fronteiras da ciência e da espiritualidade. São Paulo: Cultrix/Amana, 10ed.
_______. 2008. O tao da física: Um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental. São Paulo: Cultrix, 27ed.
Chopra, Deepak; Leonard Mlodinow. 2012. Ciência x espiritualidade: Dois pensadores, duas visões de mundo. Rio de Janeiro: Zahar/Sextante.
Couto, Hildo H. do; Denize Elena Garcia da Silva. 2001. Repetição e reduplicação em língua franca. Papia 11.18-26.
Couto, Hildo H. do, Elza K. N. N. do, Gilberto P. de Araújo & Davi B. de Albuquerque (orgs.). O paradigma ecológico nas ciências da linguagem: Coletânea de ensaios clássicos e contemporâneos (a sair).
Morin, Edgar. 2007. L'An I de l'ère écologique. Paris: Tallandier.

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