Provavelmente
devido a nossa formação no contexto da filosofia que vem de Aristóteles,
passando por Descartes e Newton, temos dificuldades para lidar com o
imponderável, aquilo que não se deixa quantificar. Acreditamos que as teorias
são modelos perfeitos, acabados e inapeláveis para explicarmos a realidade.
Como devem ser perfeitos, esses modelos são imutáveis, não se pode alterá-los,
muito menos contestá-los. Infelizmente, porém, veremos que não é nada disso que
acontece. Nenhum modelo teórico existente até o momento, nem vislumbrável a
curto prazo, é infalível e, portanto, intocável. O que a ciência tenta fazer é
conseguir uma visão o mais aproximada possível de seu objeto de estudo. Por ser
aproximada, essa interpretação pode ser adaptada, melhorada e até refutada por outras
mais recentes, que representam o estágio a que o conhecimento chegou.
Como disse Richard Dawkins, em seu livro O gene egoísta (São Paulo: Cia. das Letras, 2008), "a contribruição mais importante que um cientista pode fazer não é propor uma nova teoria ou revelar um novo fato, mas descobrir um novo modo de olhar para as teorias ou os fatos antigos" (p. 22-23). Ainda segundo Dawkins, uma mudança de visão pode produzir algo que é mais grandioso do que uma teoria". Enfim, "uma nova maneira de ver [...] pode representar uma contribuição original à ciência" (p. 23).
Como disse Richard Dawkins, em seu livro O gene egoísta (São Paulo: Cia. das Letras, 2008), "a contribruição mais importante que um cientista pode fazer não é propor uma nova teoria ou revelar um novo fato, mas descobrir um novo modo de olhar para as teorias ou os fatos antigos" (p. 22-23). Ainda segundo Dawkins, uma mudança de visão pode produzir algo que é mais grandioso do que uma teoria". Enfim, "uma nova maneira de ver [...] pode representar uma contribuição original à ciência" (p. 23).
O conceito de
'ecossistema fundamental da língua' é o primeiro a surgir na versão brasileira
da Ecolinguística chamada de Linguística Ecossistêmica. O seu germe se encontra
no livrinho O que é português brasileiro (São Paulo: Brasiliense, 1986)
e em investigações feitas nos anos de 1997 a 1999, como se pode ver na
Introdução de Couto, Couto, Araújo e Albuquerque (a sair), mas a
primeira apresentação sistemática e formal foi feita em Couto e Silva (2001), sob o nome
de "ecologia fundamental da língua". Na postagem número 13 deste blog,
temos uma apresentação relativamente bem detalhada do ecossistema fundamental
da língua. Como se pode ver nessa postagem, trata-se de um dos conceitos
centrais da Linguística Ecossistêmica. O que eu gostaria de discutir aqui é uma
questão espinhosa, que revela a dificuldade que temos para expressar em
linguagem comum novos achados científicos, como discuti também em relativo
detalhe na postagem número 15, sob o título de "A língua não é uma coisa,
é motraive". A questão é espinhosa porque vou propor uma mudança de
termos, embora não a de conceito. Estou propondo que, doravante, em vez de
'ecossistema fundamental da língua' e respectivo 'meio ambiente fundamental da
língua' passemos a falar em ECOSSISTEMA INTEGRAL DA LÍNGUA e respectivo MEIO
AMBIENTE INTEGRAL DA LÍNGUA. O objetivo da presente postagem é justificar essa
mudança de terminologia, coisa de que as pessoas não gostam muito, no contexto
dessa visão moderna de ciência.
A ideia de algo
"fundamental", no fundo no fundo, lembra a visão de mundo da mecânica
clássica, de Descartes e de toda a linha de pensamento que vem desde pelo menos
Aristóteles, ou seja, aquele pensamento linear, de que as coisas e fenômenos
são compostos de partes, nas quais podem ser decompostos. Isso implica que
juntando essas partes, chagamos ao todo. Nesse caso, o "fundamental",
o "básico" e "irredutível" seriam as partes mínimas. Pois
bem, a visão ecológica de mundo (VEM), que começou com a Teoria de Relatividade
e a Mecânica Quântica e foi reforçada com a emergência da Ecologia, para não
falar em teorias mais recentes (do caos, dos sistemas complexos, teoria da
matriz S etc.) considera o todo como maior do que o conjunto das partes que o
compõem. O todo não é como um relógio que pode ser montado e desmontado,
continuando um relógio como antes. Essa visão não funciona no caso dos
sistemas vivos nem no nível do infinitamente grande e do infinitamente
pequeno.
Uma das teorias
físicas mais recentes, a Hipótese Bootstrap
(Matriz do Espalhamento, Scattering Matrix
ou Teoria da Matriz S), de Geoffrery Chew, "unifica a mecânica quântica e a
teoria da relatividade numa teoria que abrange todos os aspectos quânticos e
relativistas da matéria subatômica em sua totalidade e, ao mesmo tempo,
representa um rompimento radical com toda a abordagem ocidental à ciência
básica" (Capra 1995: 41). "Essa filosofia bootstrap não
só abandona a ideia de blocos de construção fundamentais da matéria, como nem
sequer admite entidade fundamental alguma – nenhuma constante, lei ou equação
fundamental. O universo material é concebido como uma rede ou teia dinâmica de
eventos inter-relacionados. Nenhuma das propriedades de qualquer parte dessa
rede é fundamental; todas decorrem das propriedades das outras partes, e a
consistência global de suas inter-relações determina a estrutura da rede
toda" (p. 42).
Isso foi
complementado com o surgimento da Ecologia, cujo conceito central é o de
ecossistema. Como disse Edgar Morin, "o ecossistema [...] não tem nenhum
centro de controle, [....] nenhuma cabeça reguladora, [...] nenhum programa
genético. Seu processo de autorregulação integra a morte na vida e a vida na
morte" (Morin, 2007: 27). Não é possível decompô-lo em seus componentes
“população de organismos”, “habitat” e “interações”. Separadamente, essas
categorias nada têm de ecológico, assim como a água é muito diferente do que a
mera soma de “hidrogênio” e “oxigênio”. O todo é uma grande rede de interações.
Essa ideia foi complementada por Capra em diversas publicações, como Capra
(2008: 241-248). Em Capra (1998) ele apresenta cinco categorias dessa nova
visão da ciência, que ele chama de Novo Paradigma, frente ao velho
(cartesiano-newtoniano). Vejamo-las:
1. Mudança da parte para o todo
No velho paradigma, acreditava-se que em qualquer
sistema complexo a dinâmica do todo poderia ser compreendida a partir das
propriedades das partes.
No novo paradigma, a relação entre as partes e o
todo é invertida. As propriedades das partes só podem ser entendidas a partir
da dinâmica do todo. Em última análise, não há partes, em absoluto. Aquilo que
chamamos de parte é meramente um padrão numa teia inseparável de relações.
2. Mudança de
estrutura para processo
No velho
paradigma, pensava-se que havia estruturas fundamentais, e também que havia
forças, e mecanismos por cujo intermédio estas interagiam, dando, dessa forma,
nascimento ao processo.
No novo
paradigma, cada estrutura é vista como a manifestação de um processo
subjacente. Toda a teia de relações é intrinsecamente dinâmica.
3. Mudança de
ciência objetiva para "ciência epistêmica"
No velho
paradigma científico, acreditava-se que as descrições eram objetivas, isto é,
independentes do observador humano e do processo de conhecimento.
No novo
paradigma, acredita-se que a epistemologia – a compreensão do processo de
conhecimento – deve ser incluída explicitamente na descrição dos fenômenos
naturais.
4. Mudança de
construção para rede como metáfora do conhecimento
A metáfora do
conhecimento como construção – leis fundamentais, princípios fundamentais,
blocos de construção fundamentais etc. – tem sido usada na ciência e na filosofia
ocidentais por milênios.
Durante as
mudanças de paradigma, sentiu-se que os alicerces do conhecimento estavam se
desagregando.
No novo
paradigma, essa metáfora está sendo substituída pela metáfora da rede. Na
medida em que percebemos a realidade como uma rede de relações, nossas
descrições formam, igualmente, uma rede interconexa representando os fenômenos
observados.
Nessa rede, não
haverá hierarquias nem alicerces.
A mudança de
construção para rede também implica o abandono da ideia de que a física é o
ideal por cujo intermédio todas as outras ciências são modeladas e julgadas, e
a principal fonte de metáforas para descrições científicas.
5. Mudança de
descrições verdadeiras para descrições aproximadas
O paradigma
cartesiano baseou-se na crença de que o conhecimento científico poderia
alcançar a certeza absoluta e final.
No novo
paradigma, se reconhece que todos os conceitos, todas as teorias e todas as
descobertas são limitadas e aproximadas.
A ciência nunca
poderá fornecer uma compreensão completa e definitiva da realidade.
Os cientistas
não lidam com a verdade (no sentido de correspondência exata entre a descrição
e os fenômenos descritos); eles lidam com descrições limitadas e aproximadas da
realidade
(Capra 1998: 11-13).
Para mais
discussões sobre esse assunto, ver Chopra & Mlodinow (2012: 297-312), entre
muitos outros.
Diante do que
acaba de ser visto, parece incoerente continuarmos usando a expressão
"ecossistema fundamental da língua” e “meio ambiente fundamental da
língua". Felizmente, temos uma ótima saída. Sem deixar de lado o conceito
que ela expressa, podemos nos valer do termo "integral" de Leonardo
Boff. Como exposto em Boff (2012), esse ecologista propõe quatro ecossistemas,
que ele chama de "ecologias". São elas a “ambiental” (correspondente
ao nosso ecossistema natural da língua), a “política/social” (equivalente ao
nosso ecossistema social da língua) e a “mental” (que aponta para o nosso ecossistema
mental da língua). Abrangendo as três, ele propõe a "ecologia
integral". Pois bem, o que proponho agora é que em vez de 'ecossistema
fundamental da língua' e respectivo 'meio ambiente fundamental da língua'
passemos a chamar esse ecossistema totalizante de ECOSSISTEMA INTEGRAL DA
LÍNGUA (EIL), com respectivo MEIO AMBIENTE INTEGRAL DA LÍNGUA (MIL).
Não há nenhuma
perda conceitual nessa mudança de termos. Onomasiologicamente, podemos dizer
que a coisa designada continua a mesma. O que muda é a "palavra" que
a designa. Há diversas vantagens nessa mudança de terminologia. A primeira é
justamente o fato de se evitar a ideia, refutada pela ciência moderna, de que
há fundamentos, blocos de construção fundamentais e não redes. A segunda é o
fato de a ideia de "integral" implicar que esse ecossistema integra
os demais, que eles estão contidos nele. Com isso evitamos ir contra princípios
da ciência moderna, aí inclusa a Ecologia, e inserimos a Linguística Ecossistêmica
na visão ecológica de mundo para valer, sem concessões.
Repito, as
pessoas que seguem determinada teoria desejam tacitamente que ela não mude. Eu
me lembro das reclamações que ouvi ao longo das diversas mudanças por que
passou a gramática gerativa. Mas, como disse Noam Chomsky, a ciência é
dinâmica. Ele chega ao ponto de dizer que quando uma revista publica
determinado artigo ele já está defasado, para não falar de livros. A seção mais
atualizada, ainda em sua opinião, é a de cartas dos leitores. A Linguística Ecossistêmica
não é exceção. Ela também é dinâmica, evolui. É chegado o momento de deixarmos
de falar em ‘ecossistema fundamental’, e substituí-lo por ‘ecossistema integral
da língua’. Com isso, temos agora os seguintes ecossistemas:
1) Ecossistema
Natural da Língua, contendo o Meio Ambiente Natural da Língua;
2) Ecossistema
Mental da Língua, contendo o Meio Ambiente Mental da Língua;
3) Ecossistema
Social da Língua, contendo o Meio Social da Língua;
4) Ecossistema
Integral da Língua, contendo o Meio Ambiente Integral da Língua.
O EIL pode ser
encarado da perspectiva da Comunidade de Fala e da da Comunidade de Língua,
exatamente como já exposto em postagens anteriores, como a de número 15.
Isso não muda em
absolutamente nada o arcabouço epistemológico de nossa ciência, apenas
aperfeiçoa sua terminologia.
Referências
Boff, Leonard.
2012. As quatro ecologias: Ambiental, política e social e integral. Rio
de Janeiro: Mar de Ideias.
Capra, Fritjof.
1995. Sabedoria incomum. São Paulo: Cultrix, 10ed.
_______. 1998. Pertencendo
ao universo: Explorações nas fronteiras da ciência e da espiritualidade.
São Paulo: Cultrix/Amana, 10ed.
_______. 2008. O
tao da física: Um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental.
São Paulo: Cultrix, 27ed.
Chopra, Deepak; Leonard Mlodinow. 2012. Ciência x espiritualidade: Dois pensadores,
duas visões de mundo. Rio de Janeiro: Zahar/Sextante.
Couto, Hildo H.
do; Denize Elena Garcia da Silva. 2001. Repetição
e reduplicação em língua franca. Papia 11.18-26.
Couto, Hildo H.
do, Elza K. N. N. do, Gilberto P. de Araújo & Davi B. de Albuquerque
(orgs.). O paradigma ecológico nas ciências da linguagem: Coletânea de
ensaios clássicos e contemporâneos (a sair).
Morin, Edgar.
2007. L'An I de l'ère écologique. Paris: Tallandier.
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