sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O que é meio ambiente da língua?


Qual seria a mais adequada de discutir o tema formulado no título desta postagem inicial deste blog, encarando a questão como "língua e meio ambiente" ou "meio ambiente e língua?" Cada uma das duas formulações tem importantes implicações teóricas e metodológicas. O ponto de vista defendido por mim é o de que a segunda expressão é mais apropriada para uma visão ecológica da língua, e da sociedade em geral, pois ela sugere que o que vem primeiro é o mundo, não a linguagem. Agora é chegado momento de discutirmos o que vem a ser meio ambiente da língua.
Gostaria de começar desfazendo um mal-entendido. Alguns críticos da ecolinguística alegam que quando falamos em MA da língua estamos fetichizando-a, coisificando-a, encarando-a como se fosse uma coisa que se encontraria em determinado lugar, e esse lugar seria seu meio ambiente. Isso se contraporia frontalmente à visão defendida pela ecolinguística, pela ecologia e até pela física após o advento da teoria da relatividade. Da perspectiva da ecologia, L equivale às inter-relações vigentes no interior do ecossistema. Em um dos casos, por exemplo, ela é constituída pelas interações verbais que se dão entre os membros da população (P). Assim sendo, o MA de L é constituído pelo meio ou entorno em que essas inter-relações ou interações têm lugar. O detalhe é que essas inter-relações podem ser encaradas de três perspectivas diferentes, vale dizer, elas podem ser surpreendidas em três meios ambientes distintos. Vejamos quais são esses meios ambientes e quais são os respectivos ecossistemas em que se inserem.
Os precursores e os primeiros ecolinguistas foram unânimes em considerar a sociedade como o MA de L, e tacitamente o único. É o caso de Haugen (1972), Salzinger (1979), Hagège (1985), Fill (1993) e Makkai (1993), entre outros. É assim que pensam os sociolinguistas e grande parte dos estruturalistas que vieram na esteira de Saussure: para eles o MA da língua é só a sociedade. Para a gramática gerativa, confessadamente seguidora de princípios platônico-cartesianos, o MA de L é o cérebro/mente. Toda a obra de Chomsky e seguidores defende esse ponto de vista explicitamente. Para a tradição filosófica que se ocupa do assunto, linguagem seria uma espécie de mediador entre nós e o mundo, sobretudo quando se encara a relação palavra-coisa. Para essa linha de pensamento, o MA da língua é o mundo. Isso já pode ser visto no livro Crátilo, de Platão. Em suma, três importantes orientações teórico-filosóficas partem de três pontos de vista distintos, no que tange ao meio ambiente da língua. Qual delas está com a razão? Todas, ou nenhuma, dependendo de como encaremos a questão. Como cada uma encara L de uma única perspectiva, tem razão dessa perspectiva, mas está errada por ignorar as duas outras. Só tem razão parcialmente. Na verdade, existem três meios ambientes da língua. Edward Sapir já reconhecia, há muito tempo (cf. Sapir 1969), dois meios ambientes da língua. São eles o social, o mais importante em sua opinião, e o natural. Embora seu texto date originalmente de 1911, está bem à frente das duas orientações recém-mencionadas. Infelizmente, porém, o autor se paroximou mais da real situação, mas não chegou a reconhecer que, na verdade, a língua tem três meios ambientes, quais sejam, o natural, o mental e o social. Vejamos o que são eles.
A visão tradicional, às vezes até mesmo de grupos étnicos animistas, é a de que L faz parte do mundo. Melhor dizendo, L é um elo de ligação entre nós e ele. É a visão mais abrangente de língua, aquela que a encara como fazendo parte de um todo constituído por um povo (P), vivendo na própria terra ou território (T) e falando a própria língua (L). Nesse caso, o mundo físico, que inclui os próprios membros de P, mas que aqui está representado apenas pelo símbolo T, é o meio ambiente físico, ou seja, o MA natural da língua. O todo formado pelos dois, isto é, L mais MA natural, constitui o ecossistem maior em que a língua se insere, chamado ecossistema natural da língua, como já foi sugerido anteriormente. É entre os membros de P em sua práxis diária em T que se dão as inter-relações, no caso específico as interações, que constituem a língua do respectivo povo. Esse ecossistema constitui as bases, as fundações, sobre as quais tudo na língua é construído. Por isso mesmo já foi chamado de ecossistema fundacional, ou melhor, ecossistema fundamental da língua. Desse ponto de vista, temos, em seu interior, o MA fundamental da língua, que é justamente o todo formado por P e T. Língua são as inter-relações que estão em P que, por seu turno, está em T.
A concepção racionalista, ou seja, a da gramática gerativa, só vê a língua como fenômeno mental. Chomsky já disse explicitamente que o locus da língua é o cérebro/mente. De fato, como um conjunto de regras, ela está inscrita nas conexões neurais (sinapses) no interior do cérebro. Ao serem ativadas, essas conexões neurais permitem a expressão do pensamento, na visão dos racionalistas, ou a comunicação eficaz, na dos que sociolinguistas. Saussure via na língua um fenômeno psicossocial, por isso reconhecia que ela era um fenômeno social que está armazenado no cérbro da totalidade dos falantes, isto é, dos membros de P. Como se vê, as conexões neurais em questão são o MA mental da língua. O todo formado por L mais respectivas conexões neurais constitui o ecossistema mental da língua.
Em terceiro lugar, temos a concepção dos primeiros ecolinguistas e dos sociolinguistas. De acordo com ela, o meio ambiente da língua é formado pelos membros de P organizados socialmente, vale dizer, a sociedade. Partindo daí, deduz-se, naturalmente, que a sociedade é o MA social da língua, o que até parece ser tautológico. A totalidade formada por L e sociedade constitui o ecossistema social em que L se insere, o ecossistema social da língua. De qualquer forma, tudo que tiver a ver com a faceta social da língua pertence a esse domínio. Por ser o mais visível, muitos pesquisadores foram levados a pensar que ele era o único MA de L. No entanto, por mais conspícuo que seja, é apenas um entre três. Nenhum deles é mais importante do que o outro. Na verdade, há uma inter-relação inextricável entre eles. Não há como falar de um sem que os outros dois fiquem implícitos. A vantagem da ecolinguística é justamente não compartimentalizar, ou melhor, não coisificar um deles e tentar vendê-lo como se fosse a língua. As inter-relações entre eles podem ser visualizadas na figura 1, em que S está para ecossistema social, M para ecossistema mental e N para ecossistema natural da língua.

M
/     \
S ----- N
Fig. 1

A linha segmentada entre S e N indica que não há relação imediata e direta entre o aspecto social e o natural da língua. Como veremos pormenorizadamente mais adiante, toda relação entre o aspecto social da língua e o mundo físico, natural, é mediada por P. No caso da figura 1, pelo ecossistema mental, sendo que o cérebro/mente é também uma parte física dos membros de P. Toda relação entre S e N é mediada por M.
Posteriormente, examinarei cada um desses três meios ambientes da língua, na ordem em que foram brevemente apresentados acima. Teremos oportunidade de ver que há questões que podem (e devem) ser tratadas de modo mais adequado a partir da primeira, da segunda ou da terceira perspectiva. No entanto, sem esquecer jamais das inter-relações implícitas na figura 1, ou seja, de que que elas estão inter-relacionadas. Na próxima postagem falarei do MA natural da língua.

Bibliografia
Couto, Hildo Honório do. 2007. Ecolinguística - estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília: Thesaurus.
Fill, Alwin. 1993. Ökolinguistik: Eine Einführung. Tübingen: Gunter Narr Verlag.
Hagège, Claude. 1985. L'homme de paroles. Paris: Fayard.
Haugen, Einar. 1972. The ecology of language. In: The ecology of language. Stanford: Stanford University Press, p. 325-339.
Makkai, Adam. 1993. Ecolinguistics: ¿Toward a new **paradigm** for the science of language? Londres: Pinter Publishers.
Salzinger, Kurt. 1979. Ecolinguistics: A radical behavior theory approach to language behavior. In: Doris Aaronson & Robert W. Rieber (eds.) Psycholinguistic reasearch: Implications and applications. New York: Erlbaum, p. 109-129.
Sapir, Edward. 1969. Língua e ambiente. Linguística como ciência. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, pp. 43-62.

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