sexta-feira, 1 de abril de 2011

O prefixo 'sem' no português brasileiro: uma abordagem ecolinguística (com Maria Aparecida Curupaná da Rocha Mello)

NOTA
Uma outra versão deste texto foi publicada na revista dos Lusitanistas Alemães, Lusorama 101/102, p. 119-132, 2015, em coautoria com Elza Kioko N. N. do Couto. Ver www.lurorama.de


Nos últimos anos a expressão "sem-terra" tem aparecido na imprensa quase diariamente. Às vezes, pode-se ver também "sem-teto", em um sentido que tem algo a ver com o de "sem-terra". Pelo menos "sem-teto" tem equivalentes em outras línguas, como no inglês "homeless" e o alemão "Obdachlos". Isso é interessante, porque mostra que é uma necessidade das línguas dispor de alguma forma de derivação para criar uma palavra para designar "privação de algo", que é, justamente, o caso do "-less" inglês e do "-los" alemão. A construção inglesa e a alemã são casos indiscutíveis de derivação. No caso das duas construções brasileiras, no entanto, parece que os gramáticos não as têm encarado como tal. Talvez sejam consideradas como casos de composição, no caso, preposição + substantivo.
O objetivo deste pequeno ensaio é fazer um estudo de construções como as de "sem-terra" e "sem-teto", tentando mostrar que o "sem-" é um novo prefixo que está se insinuando no português brasileiro e que já apresenta uma certa produtividade. O arcabouço em que trabalhamos é o que se vem chamando de ecolingüística (Fill 1993). Para o tratamento dos dados, usamos software Contexto, produzido por Jehferson Wohllerz de Mello, para ser usado no que atualmente se vem chamando de lingüística de corpus, que trabalha com grande quantidade de dados.
Parece que uma das primeiras construções, se não a primeira, com "sem-" que surgiu na língua foi "sem-vergonha". Há muito tempo essa construção é largamente usada em todos os níveis de linguagem, em todas as regiões do Brasil. É bem provável que ela tenha sido modelo para as duas que foram mencionadas acima. É provável também que, sobretudo no caso de "sem-teto", o inglês tenha tido alguma influência, uma vez que essa língua tem sido uma fonte constante de empréstimos para nossa língua. O mais provável é que os dois fatores podem ter tido alguma influência na emergência desse novo tipo de construção morfológica em português.
Usando o programa Contexto, verificamos as ocorrências de palavras derivadas iniciadas por "sem-" em textos jornalísticos de todos os estados brasileiros, coletados por Maria Aparecida Curupaná da Rocha Mello, com um total de 1.047.743 palavras, quantidade considerada mínima pela lingüística de corpus. Os resultados obtidos estão reproduzidos no quadro a seguir.

Ocorrência          Porcengagem
sem-terra..............6
sem-casa..............3
sem-teto...............3
sem-vergonha.......2
Total................... 14

Parece pouco, diante da freqüência com que ouvimos falar sobretudo em "sem-terra". Por isso, consultamos o dicionário Houaiss, no qual encontramos os seguintes exemplos:

sem-amor, sem-cerimônia, sem-dinheiro, sem-família, sem-fim, sem-gracice, sem-justiça, sem-lar, sem-luz, sem-nome, sem-número, sem-pão, sem-par, sem-pudor, sem-pulo, sem-razão, sem-sal, sem-segundo, sem-serifa, sem-termo, sem-terra, sem-teto, sem-trabalho, sem-ventura, sem-vergonha.

Essa lista requer algumas observações. Primeiro, o dicionário registra também uma forma derivada de "sem-cerimônia", ou seja, "sem-cerimonioso". Ao lado de "sem-vergonha", ele inclui quatro derivados, que são "sem-vergonhez", "sem-vergonheza", "sem-vergonhice", "sem-vergonhismo". Segundo, ele registrou "sem-gracice", mas não a forma primitiva "sem-graça". O termo "sem-serifa" é uma adaptação de "sans serifa" (diz-se de ou caráter tipográfico cujo desenho não apresenta remate nas hastes). Outros termos parecem não ser usados na linguagem quotidiana, tais como "sem-segundo" (sem par, sem igual, único) e "sem-termo" (sem-fim).
Aos termos da linguagem jornalística e do dicionário, poder-se-iam acrescentar outros que são efetivamente usados, em um ou outro nível ou variedade do português brasileiro. Entre eles temos os seguintes:

sem-gosto, sem-graça, sem-jeito, sem-sabor, sem-seca

O segundo deles (sem-graça) inclusive apareceu sob a forma derivada "sem-gracice" nos exemplos arrolados pelo dicionário, como acabamos de ver. Quanto a "sem-sabor", parece tão firmemente arraigado na língua que inclusive admite derivação, como "sem-saborão/sem-saborona". O último deles (sem-seca), foi registrado pelo primeiro autor no interior de Minas Gerais, município de Patos de Minas.
Alguém poderia argumentar que só se poderia afirmar que haveria um novo prefixo "sem-" produtivo no português brasileiro se tivéssemos mais exemplos. Apenas os que foram apresentados até aqui não seriam suficientes para tal afirmação. É preciso salientar, no entanto, que produtividade não é o mesmo que número de ocorrência. Uma construção pode ser considerada produtiva se permite construir novos termos de tempos em tempos. É exatamente o que ocorre com o novo prefixo "sem-". Nos dias atuais, podemos ouvir construções com esse prefixo a qualquer momento. Por exemplo, recentemente ouviu-se a expressão "sem-letra", referindo-se àqueles que não têm acesso ao letramento, que só vivem no mundo da oralidade, àqueles que não lêem nem escrevem.
Além do que acaba de ser dito, não se pode considerar apenas as construções separadas com hífen dos dados jornalísticos como sendo efetivamente palavras prefixadas. Dito de outro modo, os derivados mediante o prefixo "sem-" não se limitam àqueles que os jornais e um dicionário registram usando hífen. Há casos que, mesmo não tendo sido transcritos com um hífen separando o "sem-" do outro termo, pode-se discutir se são uma única palavra, ou meramente seqüências de "sem" mais alguma coisa. Nesse caso entrariam as seguintes construções, também extraídas pelo programa Contexto dos dados dos jornais brasileiros:

sem caráter, sem controle, sem efeito, sem exceção, sem fio, sem igual, sem importância, sem interrupção, sem limites, sem precedente, sem sentido, sem sucesso

Pelo simples fato de os jornais terem escrito todas essas expressões sem hífen não quer dizer que não sejam palavras prefixadas. Ao que tudo indica, estariam no mesmo caso dos demais exemplos do dicionário e dos jornais. Tanto que são combinações fixas, que sempre ocorrem juntas. Outras construções têm um caráter mais ambíguo ainda. As que se vêem logo a seguir ocorrem freqüentemente juntas. No entanto, não temos tanta certeza se são efetivamente palavras prefixadas ou se se trata de uma construção com a preposição "sem" seguida de um substantivo ou de um infinitivo (que tem valor de substantivo).

sem ação, sem alternativa, sem ânimo, sem chance, sem condição, sem data, sem dúvida, sem fronteira, sem permissão, sem fundo, sem moral, sem parar, sem pestanejar, sem problema, sem rodeio, sem sombra de dúvida, sem vida

Pode ser que alguma delas seja apenas aquilo que em alemão se chama "feste Verbindungen", ao pé da letra "ligações fixas", ou seja, palavras que ocorrem freqüentemente juntas. Isso vale sobretudo para "sem sombra de dúvida", que parece ser uma expressão idiomática.
Àqueles que têm dificuldade em encarar "sem-" como prefixo, gostaríamos de remeter ao interessantíssimo trabalho de Bernard Pottier (cf. Pottier 1962) de final da década de cinqüenta e começo da de sessenta. Ele demonstrou que grande parte dos prefixos das línguas românicas (ele trabalhou basicamente com o francês, o espanhol e o português) provêm de preposições latinas. O que é mais, os prefixos preservam o signifidado básico da preposição de origem. Aliás, no próprio latim isso já acontecia. Assim, de seria o mesmo em decedere de vita e de sella exsiluit em latim (p. 276-277). Do mesmo modo, em francês o de inicial de decouler (decorrer, correr de) é o mesmo de couler de la montagne (correr da montanha), o que ficaria mais explícito se mudássemos a ordem das palavras para de [la montagne] couler (p. 198). A preposição de valor oposto ad tem aproximadamente o mesmo significado nas suas duas ocorrências de adesse ad urbem. O mesmo vale para o português. O de é aproximadamente o mesmo nas duas ocorrências de deduzir de, assim como a preposição a e o a inicial do verbo também são basicamente os mesmos em anexar uma folha a um texto. Segundo Pottier (1962) isso se deve ao fato de os prefixos praticamente não se distinguirem das preposições, palavras que por natureza indicam essas relações, no caso de espacialidade, temporalidade e noção.
O mesmo está ocorrendo no caso do novel prefixo "sem-" do português brasileiro. Ele mantém o significado original da preposição, que é de privação. Sua ocorrência em "sem-terra" tem o mesmo significado básico que a preposição que ocorre na frase "João chegou sem sua esposa".
Passemos agora ao nosso segundo objetivo, ou seja, apresentar uma proposta de interpretação ecolingüística aos fatos expostos acima. Primeiro, definamos ecolingüística. Como já fora proposto pelo pioneiro Einar Haugen, o objeto dessa disciplina é "o estudo das interações entre língua e seu meio ambiente". O autor acrescentou que "o meio ambiente de uma língua é a sociedade que a usa como um de seus códigos" (Haugen 1972: 325). Hoje sabe-se que o meio ambiente de uma língua compõe-se do meio social e do natural (Fill 1993). Aqui interessa apenas a relação entre a língua e o meio ambiente social.
Da perspectiva da influência do meio ambiente social na língua, podemos tirar duas conclusões sobre o uso do prefixo "sem-" pelos jornais brasileiros bem como em outros níveis de linguagem. Comecemos por "sem-terra" e "sem-teto". Como vimos acima, a primeira foi a que mais ocorreu (6 vezes), o que é reflexo de importante momento da vida política brasileira, em que uma categoria de pessoas despossuídas se arregimenta em uma associação (MST = Movimento dos Sem-Terra) para reivindicar um pedaço de terra em que possam viver. A expressão se tornou bastante conhecida devido à ampla cobertura que a imprensa tem dado aos atos praticados pelo movimento. Isso é resultado da condição de miserabilidade em que vivem grandes contingentes da população brasileira.
Quanto à expressão "sem-teto", ocorreu apenas três vezes. Acontece que ela praticamente se duplica na expressão sinônima "sem-casa", que também ocorreu três vezes nos mesmos textos. Vê-se, portanto, que a condição de não ter onde morar rivaliza com a de não ter terra para lavrar, reforçando a conclusão quanto á pobreza de considerável parcela do povo brasileiro. Tanto em um quanto em outro caso, o uso da expressão reflete objetivamente fatos do meio ambiente social em que a língua é usada.
Uma segunda conclusão tem a ver com a permeabilidade que a sociedade brasileira tem a expressões de origem inglesa (estadunidense, mais precisamente). Estamos convictos de que a construção "sem-teto" se fixou no português brasileiro também devido à existência de "homeless" em inglês. O que é modismo lá, e se lexicaliza, vira modismo cá, e se lexicaliza, quando já não vem pronto de lá.
Se queremos imitar os americanos, por que não assumimos que temos um prefixo a mais na língua? Com isso teríamos recursos morfológicos para traduzir praticamente tudo que termina por "-less" no inglês. Por exemplo, no âmbito dos estudos lingüísticos, um falante de inglês pode usar a expressão "grammarless" que, até recentemente, não conseguíamos traduzir a não ser por torneios sintáticos. Admitindo o novo prefixo "sem-", teríamos o equivalante "sem-gramática". Essa seria uma imitação positiva, pois faria uso de recursos internos do próprio português. O que se admira é que as mesmas pessoas que não titubeiam em usar anglicismos a toda hora em sua fala em português têm restrições quanto ao uso de algo castiçamente e legitimamente formado dentro da própria língua.

Bibliografia
Couto, Hildo Honório do. 2003. A prefixação no crioulo guineense: desfazendo e refazendo ações. Revista Internacional de Lingüística Iberoamericana (RILI) n. I: 161-175.
_______. 2007. Ecolinguística - estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília: Thesaurus Editora.
Fill, Alwin. 1993. Ökolinguistik. Tübingen: Gunter Narr Verlag.
Haugen, Einar. 1972. The ecology of language. The ecology of language. Stanford: Stanford University Press: 325-339.
Pottier, Bernard. 1962. Systématique des éléments de relation: étude de morphosyntaxe structurale romane. Paris: Librairie Klincksieck.

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