segunda-feira, 21 de outubro de 2013

As conjunções e as relações entre linguagem e mundo extralinguístico


Uma das primeiras conceituações de Ecolinguística afirma que ela investiga as relações entre língua e mundo. Para a Linguística Ecossistêmica, essas relações são o começo de tudo. Como no ecossistema biológico, ela investiga as relações entre organismos (indivíduo-indivíduo: comunicação) e entre qualquer indivíduo da população e o mundo (indivíduo-mundo: significação, referência). A segunda é objeto de estudo da semântica, e procura investigar o significado de palavras isoladas (substantivos, verbos etc.) e de enunciados e textos inteiros. Nós já investigamos a formação de palavras com os prefixos re- e des-, certos processos de formação de palavras compostas (partindo de sua história) e até das preposições espaciais, de cuja base onomasiológica emergiriam as temporais e as nocionais (relações abstratas), como vem demonstrando Bernard Pottier desde a década de sessenta do século passado. Enfim, até agora temos visto que tudo na linguagem tem a ver com o mundo extralinguístico, inclusive as preposições, como se pode ver em http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/7496/1/ARTIGO_EcologiaRelacoesEspaciais.pdf O objetivo da presente postagem é tentar mostrar que o único tipo de palavra que aparentemente não teria nada a ver com o mundo seriam as conjunções.
De acordo com Jerônimo Soares Barbosa, em sua Grammática philosóphica da lingoagem portugueza, de final do século XIX, em português existem 9 conjunções 'essenciais': (antiga), e, mas, nem, ou, pois, porém, que, se, a que se deveria acrescentar, talvez, embora, logo e todavia. A Grammaire générale et raisonnée de Port Royal (1969) menciona como exemplos de conjunções: et, non, vel, si, ergo, ou seja, 'e, não, ou, se, então' (primeira edição de 1660p. 102).
As próprias gramáticas normativas já sugerem isso ao afirmarem que as preposições indicam relações entre palavras (portanto, também entre os conceitos a que se ligam) e as conjunções relacionariam orações em um texto. Isso significa que as primeiras teriam a ver com “conceitos”, mas as segundas apenas com relações intratextuais. Pelo menos as “verdadeiras” conjunções nada teriam a ver com o mundo. Por exemplo, em Maria saiu, mas João ficou, a que no mundo se referiria mas? A palavra simplesmente mostra uma relação entre Maria saiu e João ficou. No caso, parece implicar que Maria saiu e João não saiu. O mas parece conter algo de negação, de privação, fato surpreendente. Como se pode ver em Cunha (1970: 391-397), grande parte das conjunções são meras variantes semasiológicas de um mesmo conteúdo, como mas, porém, contudo e todavia. Algumas podem ser convertidas em outras, dependendo da perspectiva em que o falante se coloque. Assim, Se João é mineiro, é brasileiro pode ser convertida em João é brasileiro porque é mineiro e em João é mineiro, logo é brasileiro. Enfim, como se trata de relações lógicas, vejamos o que dizem os lógicos sobre esse tipo de relação.
Do ponto de vista estritamente lógico, Hegenberg (1966: 44-51, 70-72) fala, inicialmente, de cinco “conectivos sentenciais”. São eles: 1) Negação (~ P), como em (a) João está fora x João não está fora, que seria ~(João está fora), lido como “Não se dá o caso de que ‘João está fora’”; 2) Conjunção (P.Q ou P; Q ou PÙQ), exemplicado com (a) Pedro é bom e João é inteligente; 3) Disjunção (PuQ) vel 'e/ou' (não exclusiv)/ aut 'ou' (exclusiva), ilustrado com (a) Pedro é bom ou João é inteligente; 4) Implicação (P®Q), como em (a) Se Pedro está com malária, ele precisa de quinino, (b) Se todas as flores deste vaso são rosas, e esta é uma flor do vaso, então esta flor é uma rosa; 5) Bicondicional, equivalência (P se e somente se Q; Se P então Q e se Q então P), como em (a) Pedro é bom se e somente se João é inteligente. Ele mostra que, partindo de '.' (e) e ® (implica), temos uma "espécie de linguagem 'básica'": a) P . Q eq. ~(P ® ~ Q); PuQ eq. ~P ® Q. Acrescenta que "isso evidencia que é possível 'operar' com dois conetivos 'básicos' , eliminando os demais. Com efeito, toda vez que surgir '.', poderemos usar a primeira equivalência, e toda vez que surgir 'u', empregaremos a segunda, eliminando a conjunção e a disjunção em favor da negação e do condicional. Recordando que o bicondicional é uma conjunção de dois condicionais, também esse pode ser eliminado" (p. 95). Acrescenta que "a escolha de '~' e '®' como 'básicos' é ditada por preferência ocasional. Também seria possível preferir um dos pares seguintes: ~., ~u como conetivos básicos, eliminando-se os restantes em seu favor". A demonstração é a seguinte: PuQ  eq. ~ (~P . ~ Q); P®Q  eq. ~ (P . ~ Q); P®Q  eq. ~ (P . ~Q) . ~ (Q . ~ P). Segundo o autor, “Scheffer, em 1930, mostrou a possibilidade de exprimir todos os conetivos em função de um único" (p. 95-96).
Falando do juízo, Maritain afirma que é “o ato do espírito pelo qual ele une quando afirma ou separa quando nega” (Maritain, p. 109). Isso significa que a negação é um tipo de disjunção. Ela diz que duas coisas não coocorrem: a presença de uma implica a ausência da outra e vice-versa. Como sabemos pela lógica formal, a negação é apenas uma relação entre proposições, no caso, uma relação de disjunção.
Maritain (1980) é mais detalhado ainda, embora de uma perspectiva bastante tradicional, na linha da metafísica. Inicialmente, ele fala de “conjunção”, “disjunção” e “condicional’. Ele apresenta os seguintes exemplos de conjunção: (1) Os valentes se sacrificaram e os covardes se enriqueceram (p. 127), (2) Pedro e Paulo morreram em Roma (p. 129), (3) Pedro e Paulo são amigos. De acordo com ele, "a proposição relativa reduz-se à copulativa: O homem, que vejo, corre”, que equivaleria a vejo um homem e ele corre (p. 132). Acrescenta que "em outros casos a proposição adversativa reduz-se à copulativa: Ele ri mas eu choro” é o mesmo que Ele ri e eu choro (p. 132). Como se pode ver, aí já há uma redução dos diversos tipos de relações lógicas conjuntivas. Só faltou acrescentar que a construção (2) equivale a Pedro morreu em Roma e Paulo morreu em Roma, e a (3) a Pedro é amigo de Paulo e Paulo é amigo de Pedro (p. 129), com o que o valor conjuncional de 'e' se manteria.
Segundo Maritain, "a proposição disjuntiva pode reduzir-se à proposição condicional" (disjunção). Por exemplo, o enunciado (4) Haverá um só chefe ou as coisas serão mal governadas se resolve em (5) se não houver um só chefe, as coisas serão mal governadas e (6) se houver um só chefe, as coisas não serão mal governadas (p. 132). A condicional se converteria em algum tipo de conjuntiva, uma vez que "na proposição condicional, com efeito, o juízo se dirige unicamente sobre a conjunção das proposições entre si". O exemplo (7) Se a terra gira, ela se move (p. 130), no fundo significa que “a terra gira e move”.
Ainda no sentido de redução das relações, Maritain informa que "Bergson acha que um juízo negativo ‘esta mesa não é branca’, não é mais do que um protesto contra um juízo afirmadivo possível, e por conseguinte não recai, a bem dizer, sobre a coisa em si, 'mas antes sobre o juízo' afirmativo que alguém poderia fazer a respeito" (p. 136). Mas, a despeito desse esforço de redução, na verdade Maritain multiplica as relações praeter necessitatem, exatamente como fazem as gramáticas normativas, que seguem a mesma filosofia. Ele fala em “proposição causal’, “proposição relativa”, “proposição adversativa”, “proposição exclusiva, “proposição exceptiva” e “proposição reduplicativa”.
Vejamos como a coisa se apresenta nas gramáticas normativas e como elas multiplicam as relações talvez até mais do que Jacques Maritain. Vou me basear em Cunha (1970), a fim de mostrar como é possível reduzir drasticamente o número de “conjunções”, ou melhor de função conjuncional. Entre as “aditivas”, já vemos que nem não passa de um equivalente de e seguido de negação, ou seja, equivale a e não. Elas representam uma relação fundamental, de conjunção, simultaneidade.
As “adversativas” seriam mas, porém, todavia, contudo, no entanto, entretanto. Além do fato de serem sinônimas, no fundo elas indicam que quando uma coisa se dá a outra não, logo acabam desembocando no contrário da conjunção, a disjunção. O exemplo com mas apresentado no segundo parágrafo acima demonstra-o claramente. As “alternativas” (ou, ora, quer, seja, nem, repetidas ou não) são até mais disjuntivas, de modo que as adversativas. Com efeito, em ou eu me retiro ou tu te afastas, o que temos é que os dois atos não podem se dar ao mesmo tempo. Enfim, como veremos com a análise das demais conjunções, as conjunções fundamentais, prototípicas, são e e ou, a conjunção e a disjunção, respectivamente.
Vejamos as “conclusivas” logo, pois, portanto, por conseguinte, por isso, assim etc. De maneira bem chã e rasteira, uma frase como penso, logo existo não quer dizer nada mais, nada menos do que “eu penso e eu existo”. Algo parecido se pode dizer das “explicativas”. Ao dizer vamos comer porque estou morrendo de fome, o falante está expressando a ideia de que o estar com fome tem que se juntar à ação de comer.
As “conjunções subordinativas” vão pelo mesmo diapasão. As “causais” (porque, pois, porquanto etc.), para começo de conversa, também juntam duas coisas. Uma só pode ser causa da outra se o efeito se seguir à causa, logo, ocorrer junto com ela, como em como [=porque] o mundo não para, a Igreja também vai marchando, vale dizer, o mundo não para e a Igreja vai marchando. Argumentos parecidos incluiriam as demais na conjunção. A única exceção parece serem as integrantes, cuja função é exclusivamente mostrar que uma oração é complemento da outra: tenho certeza de que ele virá e quero que você venha. Mesmo nesse caso, poder-se-ia discutir se as duas expressões não seriam o mesmo que *tenho certeza e ele virá e *eu quero e ele vem.
As duas relações fundamentais (conjunção e disjunção) a que as “conjunções” parecem reduzir-se têm ver com a espácio-temporalidade. Isso parece ficar mais claro se nos lembrarmos de que conjunção é uma relação de simultaneidade espácio-temporal. A disjunção é o seu contrário, logo se articula ao longo do mesmo eixo, isto é, é também de natureza espácio-temporal. Ora, se é de natureza espácio-temporal tem a ver com o mundo extralinguístico, com o meio ambiente natural da língua. Deve ser observado, contudo, que essa relação com o mundo extralinguístico é indireta, ela se dá só depois de reduzirmos as “conjunções” propriamente ditas a suas bases lógicas. As relações indicadas pelas “conjunções” podem até ter a ver com o mundo extralinguístico, mas apenas indiretamente. As indicadas pelas preposições emergem imediatamente de nossa experiência com o mundo real. O conceito de interioridade, ou melhor, de uma coisa dentro de outra (indicada pela preposição em) não depende de lógica nem de observador, como se pode ver em


Como disse Izidoro Blickstein, “a significação do mundo deve irromper antes mesmo da codificação linguística com que o recortamos: os significados já vão sendo desenhados na própria percepção/cognição da realidade” (Blickstein 1983: 17). Segundo o autor, “linguistas e semiólogos têm sido refratários ao exame da percepção da ‘coisa’ extralinguística” (p. 42). No entanto, “é necessário reconhecer que a experiência perceptiva já é um processo de cognição, de construção e ordenação do universo” (ibidem). Por isso, “deveriam alargar a sua metodologia de análise, voltando-se agora também para o lado direito do triângulo de Ogden e Richards – em que se coloca o referente – e explorando o mecanismo pelo qual a percepção/cognição transforma o ‘real’ em referente” (p. 46). Ele complementa esse triângulo aproximadamente como se vê na figura a seguir.

            Referência
                /     \
              /         \                   práxis
             /           \                      |
     Símbolo   Referente -------------- realidade

A figura mostra que “a realidade se transforma em referente, por meio da percepção/cognição (conforme Greimas) ou da interpretação humana (segundo Coseriu), e o referente será obrigatoriamente incluído na relação triádica”. Nesse caso, realmente as “conjunções” não chegam até a realidade, quando muito ao referente. Talvez as coisas fiquem mais claras partindo de uma reinterpretação e complementação do signo de Saussure, que consta apenas de significado e significante. Acrescentando o conceito que, aliás, já está antevisto em sua “imagem mental”, teríamos algo como a figura

   C
 /   \
S---R

em que S  está para signo, C para conceito e R para referente do mundo real. Partindo das duas maneiras de encarar a questão da referência, onomasiológica e semasiológica, podemos dizer que se há algum conteúdo semântico nas conjunções ele iria no máximo até o 'conceito' da primeira figura, não até a 'coisa' da realidade.
A língua nasceu filogeneticamente para falar do mundo. Ela renasce para a mesma finalidade ontogeneticamente em toda criança que vem ao mundo e começa a mergulhar nos fluxos interlocucionais que se dão em sua comunidade. Como está discutido em relativo detalhe em Couto (2007: 122-155, 275-280), a língua surge para falarmos do mundo. Tudo nela existe em função disso, inclusive as preposições e as conjunções. As primeiras indicam relações do mundo diretamente, ao passo que as indicam algumas relações reais apenas indiretamente.

Referências
Blickstein, Izidoro. 1983. Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade. São Paulo: Editora Cultrix/EDUSP.
Couto, Hildo Honório do. 1973. Os conetivos. Dissertação de mestrado, defendida na USP.  
_______. 2007. Ecolinguística: Estudo das relações entre língua e meio ambiente. Brasília: Thesaurus.
Cunha, Celso. 1970. Gramática do português contemporâneo. Belo Horizonte: Editora Bernardo Álvares.
Hegenberg, Leônidas. 1966. Lógica simbólica. São Paulo: Editora Herder/EDUSP.
Maritain, Jacques. 1980. Elementos de filosofia vol. II. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 9ª. ed.

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