Hildo Honório do
Couto
Universidade de
Brasília
(Professor Emérito)
Introdução
Assim
que tomei conhecimento da "função fática" da linguagem em Jakobson
(1960: 126-127), pensei que o conceito poderia ser utilizado para explicar o
cimento que une os indivíduos em sociedade, além das funções que o próprio
Jakobson lhe havia atribuído. É bem verdade que as acepções em que o autor
utilizou a expressão não servem diretamente para isso. No entanto, eu antevia
as possibilidades que o conceito oferecia, como ficou claro mais tarde com o
advento do ramo brasileiro da Ecolinguística chamado Linguística Ecossistêmica. Comecemos pelas definições que o dicionário dá do
termo.
O
Aurélio apresenta as seguintes acepções de "comunhão": 1.
Ato ou efeito de comungar: "Que é a reza senão a comunhão com o
infinito?" (Geraldo França de Lima, Branca Bela, p. 17). 2.
V. Eucaristia (1). 3. A administração ou a recepção da
Eucaristia. 4. Participação em comum em crenças, interesses ou
ideias: "os lábios ficaram colados muito tempo, em silêncio,
completando ...., a comunhão perfeita das suas almas" (Eça de Queirós, Os
Maias,11, p. 261). 5. Conjunto daqueles que comungam nos mesmos
ideais, crenças ou opiniões; comunidade. Uma das acepções encontradas no
dicionário francês Petit Robert também me pareceu bastante interessante.
Ela diz que comunhão é "estar em comunhão de ideias e de sentimentos”.
De
uma forma ou de outra, todas essas acepções têm a ver com o sentido atribuído
ao termo no presente ensaio, embora algumas apresentem mais afinidades do que
outras. Assim, o ato ou efeito de comungar (1), remete ao verbo comungar
que, ainda de acordo com o Aurélio, significa: 1. Administrar a
comunhão (O sacerdote comungou os fiéis). 2. Receber ou tomar a comunhão
(Contrito, comungou a hóstia). 3. Receber ou tomar o sacramento da
Eucaristia ("queria confessar-se e comungar, tinha medo de morrer em
pecado", Coelho Neto, Sertão, 330). 4. Pertencer a grupo ou
sociedade que tem as mesmas ideias religiosas, políticas, literárias,
científicas etc. (Sempre comungou no Partido Liberal). 5. Ter entrada ou
parte em; participar (Comunga nos ideais da liberdade). 6. Por-se ou
ficar em contato; ligar-se; unir-se; comunicar-se (Poesia é um estado de
alma religioso e metafísico em que o homem comunga diretamente com a divindade.
Alberto Ramos, Prosas de Ariel, p. 135). A acepção 3 do Aurélio
remete a comunicação, da perspectiva do receptor. A de número 4 é mais
interessante ainda, pois ter "crenças, interesses ou ideias" em comum
é estar ligado mentalmente, que tem a ver diretamente com a interpretação que a
Linguística Ecossistêmica dá ao conceito. A acepção 5 nos leva ao que chamarei
de comunhão sistêmica, aquilo que faz com que os habitantes das regiões em que
se fala uma língua (comunidade de língua) tenham o sentimento de
compartilhá-la, mesmo que não se conheçam pessoalmente nem estejam comunicando
no momento. A definição do Petit Robert tem mais afinidades ainda com o
conceito de comunhão linguístico-ecossistêmica.
Histórico
do conceito
Vejamos
um pequeno histórico do conceito de comunhão no estudo dos fenômenos da
linguagem. Até onde pude investigar, quem primeiro falou em comunhão no
contexto da comunicação foi o antropólogo inglês Bronislaw Malinowski. O texto
saiu como apêndice ao conhecido livro de Ogden & Richards, The meaning
of meaning (1923), como se pode ver em Malinowski (1972). Partindo do
pressuposto de que a linguagem só é plenamente entendida no contexto de uma
situação específica, ele afirma que “a fala é um meio necessário de comunhão; é
o instrumento indispensável para criar os vínculos do momento, sem os quais é
impossível a ação social unificada” (p. 307). Para ele, “romper o silêncio, a
comunhão de palavras, é o primeiro ato para estabelecer laços de amizade, a
qual só é consumada na partilha do pão e comunhão do alimento” (p. 311). Ele
chamou esse tipo de interação de comunhão fática, “um tipo de fala em
que os laços de união são criados pela mera troca de palavras” (p. 311). Nessa
situação, “não é preciso ou, talvez, nem deva até haver coisa alguma a
comunicar. Desde que existam palavras para trocar, a comunhão fática leva
selvagens e civilizados, por igual, para uma agradável atmosfera de intercurso
polido, social” (p. 312). Na verdade, veremos que a comunhão precede a fala e
até pode prescindir dela. Em várias situações, ela existe independentemente da
troca de palavras. Pelo contrário, a troca de palavras, ou seja, a interlocução
é que precisa ser apoiada por uma atitude de comunhão prévia.
Quatro
anos mais tarde, Grace Andrus de Laguna retomou o termo em seu livro Speech:
Its function and development (1927). De acordo com essa autora, “a língua
continua exercendo a função mais simples [da linguagem] que Malinowski chamou
de ‘comunhão fática’. Ela serve com muita frequência meramente para nos manter
em rapport afetivo uns com os outros. Nós passamos o dia com nosso
vizinho apenas como uma expressão de boa vontade e para despertar e manter uma
atitude amigável para com ele” (p. 244). Com isso, ela está expressando uma
concepção próxima à de número 2 do Petit Robert, que é a que eu adoto.
Infelizmente, porém, a autora parece confundir ‘comunhão’ com uso estereotipado
de palavras. Falando dos “gritos e chamados dos animais”, Laguna diz que “essa
troca vocal é do primeiro tipo de ‘comunhão fática’, que ajuda a cimentar os
laços da vida em comum. Aqui, sim, ela retoma o rumo que nos interessa, ou
seja, ao ver a comunhão como um tipo de cimento social (p. 278). O fato
importante é que Laguna foi certamente a terceira pessoa a falar de comunhão no
contexto da linguagem.
Quase
quarenta anos mais tarde (em 1960), Roman Jakobson retomou o termo de
Malinowski no contexto de suas seis funções da linguagem, falando em “função
fática” da linguagem, Jakobson disse que essa função "pode ser evidenciada
por uma troca profusa de fórmulas ritualizadas, por diálogos inteiros cujo
único propósito é prolongar a comunicação". Ele afirma ainda que ela
ocorre tipicamente também em aves falantes, de modo que "a função fática é
a única que compartilham com os seres humanos". Acrescenta que a interação
fática é a primeira das crianças, afirmando que “elas têm tendência a
comunicar-se antes de serem capazes de enviar ou receber comunicação
informativa” (Jakobson, 1969: 126-127). Esta última asserção se aproxima de
nossa concepção de comunhão, pois ela dá a entender que pelo menos parte da
comunhão precede a comunicação por palavras.
Uma
grande inovação de Jakobson é o fato de ter distinguido três “momentos” em
estados de comunhão ou, em seus termos, na função fática da linguagem.
Primeiro, há expressões para abrir o canal de comunicação, o que ficava bem
claro na comunicação telefônica (alô!). Segundo, há expressões para
manter o canal aberto, ou checar se ele ainda está aberto (tá, sim, hum-hum
etc.). Terceiro, existem expressões para fechar o canal de comunicação,
encerrar a interação comunicativa (tchau!). No modelo de Jakobson, a
função fática é a abertura, manutenção e fechamento do canal de comunicação.
Esses três momentos são apropriados pela comunhão linguístico-ecossistêmica. No
compartilhamento de sentimentos entre indivíduos que se veem juntos, ela tem o
mesmo papel de preparar o cenário em que a comunicação pode se dar. Isso
implica os momentos de encetar, manter e encerrar a comunicação.
Benveniste
(1970: 17-18) também tangenciou o conceito de comunhão. Falando de Malinowski,
ele diz que “ele esboçou sua configuração partindo do papel que aí tem a
linguagem. Trata-se de um processo em que o discurso, sob a forma de um
diálogo, estabelece uma relação entre os indivíduos”. Como os demais autores já
mencionados, Benveniste acha que só há comunhão via linguagem, pois é ela que
“estabelece uma relação entre os indivíduos”, ela é uma “comunhão de ideias e
de sentimentos”. Uma vantagem deste texto é que o autor reproduz três
parágrafos do ensaio original de Malinowski, embora sem nenhum tipo de comentário.
Por isso, é uma fonte para quem não tiver acesso ao texto de Malinowski.
Outro
autor francês que fala em comunhão no contexto da comunicação é Henri Gobard.
Não vamos entrar nos pormenores de sua “análise tetraglóssica”. Basta lembrar
que, para ele “a condição sine qua non de todo desenvolvimento humano é
a relação afetiva em que a linguagem serve de suporte a uma comunhão e
não a uma comunicação” (Gobard 1976, p. 23). De acordo com esse autor, “a criança que diz 'mamãe' na presença de sua
mãe não comunica nada, mas comunga toda sua relação” (p. 27). Gobard acrescenta
que “o espírito de comunhão [...] está necessariamente ligado a uma comunidade
de pequena dimensão” (p. 28). Por fim, diz ele, “cada grupo natural
secreta assim sua própria linguagem de comunhão, segundo a qual, o que importa
não é tanto comunicar, pois todos os membros do grupo sabem as mesmas coisas,
mas confirmar o que já se sabia” (p. 28). A propósito, a língua francesa dispõe de
um dito popular que expressa muito bem essa ideia, ou seja, parler de la
pluie et du beau temps, ou seja, 'falar da chuva e do tempo bom'. O próprio
Gobard menciona a expressão “il fait beau, hein”, que significa algo
como 'o tempo está bom, não é?".
O
que está dito nessa última afirmação de Gobard se aproxima bastante do conceito
de comunhão da linguística ecossistêmica. Veremos que, para esta, o que importa
não é necessariamente trocar palavras. Na verdade, a troca de palavras, ou
seja, a comunicação é que precisa ser precedida de um estado de comunhão. Como
outros autores ressaltaram, nessas situações fala-se para fugir de um incômodo
silêncio.
Há
outros termos, propostos por outros autores, que se referem a algo muito
parecido com a comunhão. É o caso do sociolinguista e crioulista William
Samarin, que usou o termo “simbiose” ou confraternização
("fraternization", referindo-se ao francês
"fraternisation"). Falando do encontro de aloglotas que dá lugar aos
chamados pidgins, ele diz que "algum tipo de simbiose é necessário para
que um pidgin se desenvolva" em uma situação de contato de línguas. Entre
as partes contactantes, havia "todo um conjunto de relações que faziam com
que a comunicação se tornasse necessária ou desejável" (Samarin, 1988:
160-161). Esse “conjunto de relações” não é nada mais nada menos do que um
estar junto e querer cooperar. Por isso, o termo ‘simbiose’ poderia
perfeitamente ser usado no lugar de comunhão. Não obstante isso, prefiro
‘comunhão’ devido a suas ligações óbvias com comunicação, além de o termo fazer
parte de uma tradição mais longa, no caso, a religiosa.
Vejamos,
por fim, duas obras mais próximas de nossa época que falam em comunhão fática.
A primeira é a de Coupeland, Coupeland & Robinson (1992). Eles começam
salientando que o conceito tem sido usado nas áreas de sociolinguística,
semântica, estilística e comunicação, salientando que em seu uso objetivos
relacionais sobrepujam os de faticidade e instrumentalidade. Os autores fazem
uma pesquisa sobre o uso de How are you? junto a pessoas idosas como uma
forma de abrir o canal de comunicação ou, nos nossos termos, de estabelecer
comunhão, para que haja comunicação. O Segundo é Senft (1995). Ele é uma boa
fonte de consulta no que concerne à conceituação de comunhão, além de
apresentar a opinião de diversos outros autores sobre o assunto.
Comunhão
na Linguística Ecossistêmica
Praticamente
todos os autores que mencionamos partem da ideia de que comunhão pressupõe
língua. Para todos eles, exceto par Jakobson (ele admite comunicação fática
entre as aves), comunhão ou comunhão fática só existe mediante algum tipo de
troca de palavras. Para Malinowski, por exemplo, os “laços de união são criados
pela mera troca de palavras”, ou seja, a comunhão só se manifesta por meio
delas. Laguna afirma que a linguagem (troca de palavras) “serve com muita
frequência meramente para nos manter em rapport afetivo uns com os
outros”, vale dizer, esse rapport (comunhão) é estabelecido pela troca
ritual de palavras. Para Jakobson, a comunhão fática (comunicação fática) se
mostra por meio de “uma troca profusa de fórmulas ritualizadas”. As mesmas
opiniões são expressadas por Benveniste e Gobard, entre outros. De todos os
autores citados acima, o que se aproximou mais da concepção
linguístico-ecossistêmica de comunhão foi, estranhamente, William Samarin,
mesmo sem ter usado o termo “comunhão”, mas o de “simbiose”. Sua asserção de
que "algum tipo de simbiose é necessário para que um pidgin se
desenvolva" leva diretamente a comunhão como a defendemos. Com efeito, os
pidgins emergem numa situação de encontro de falantes de línguas mutuamente
ininteligíveis. Para que comecem a comunicar-se uns com os outros é necessário
que haja uma predisposição para isso, que o autor chamou de “simbiose”. Essa
“simbiose” inicial é precisamente a comunhão de interesses e de objetivos que
prepara o terreno para a “troca de palavras”, ou seja, para a comunicação, ou
interação comunicativa.
Como
concebida pela Ecolinguística, sobretudo a Linguística Ecossistêmica, comunhão
não pressupõe nada. Ela é que é pressuposta para que haja interação
comunicativa, ou seja, comunicação linguística eficaz. As palavras de Samarin
recém-mencionadas podem ser um ponto de partida para essa discussão. No primeiro
encontro dos portugueses com os índios tupinambás, quando a esquadra de Pedro
Álvares Cabral chegou ao que hoje se chama Porto Seguro, em 1500 – no
“descobrimento” do Brasil –, houve diversas interações entre as duas partes,
que poderiam levar à formação de um pidgin. O fato foi minuciosamente descrito
pelo escrivão da esquadra, Pero Vaz de Caminha, no que ficou conhecido como Carta
de Caminha.
Do
ponto de vista linguístico e cultural, não havia nada em comum entre
portugueses e índios tupinambás. Os índios podem ter pensado inicialmente que
se tratava de algum tipo de deuses que chegaram em uma grande canoa, ao passo
que os portugueses não tinham certeza se os índios eram gente como eles. A
despeito de tudo isso, houve algum tipo de precário entendimento, se for
verdade o que Caminha escreveu, pois seu maior interesse era agradar ao rei. Em
Couto (2001, 2003) há uma meia dúzia de exemplos de interações que parecem ter
sido eficazes. Vejamos o primeiro deles: "o capitão mandou Nicolau Coelho
ir a terra; logo, apareceram cerca de 18 a 20 homens com seus arcos e flechas
na mão". Coelho “lhes fez sinal que posessem os arcos [no chão], e eles os
poseram”. Vale dizer, no primeiríssimo contato houve algum tipo de
entendimento, mediante gestos. Mas o que interessa no presente momento são
interações que revelam uma “comunhão de ideias, de sentimentos”, uma
“simbiose”, uma predisposição para a cooperação, uma boa vontade para interagir
com o outro.
Uma
das primeiras interações desse tipo é o fato de que lá para o terceiro dia do
contato, os índios começaram a ajudar os portugueses a carregar água doce para
encher os barris. Outro dia um português começou a tocar gaita e dançar, e os
ameríndios o acompanharam, inclusive dando-lhe as mãos, todos rindo muito. Como
disse Caminha, houve um momento em que “mesturavam-se todos tanto connosco, nos
ajudavam deles a carretar lenha e meter nos batéis e luitavam com os nossos e
tomavam muito prazer”. Em outros momentos, eles “dançaram e bailaram com os
nossos”, atitude claramente comunial. No momento em que foi celebrada a
primeira missa, os tupinambás imitavam tudo que os portugueses faziam:
ajoelhavam-se, levantavam-se, sentavam-se e se persignavam. Essas “comunhões de
ideias e de sentimentos” revelam que estavam em sintonia com os europeus, o que
em Linguística Ecossistêmica significa que estavam em comunhão com eles.
Contrariamente
ao que dizem todos os autores mencionados acima, exceto Samarin, não houve
nenhuma troca de palavras. O que houve foi um tipo especial de interação, a
interação comunial, ou simplesmente comunhão. Trata-se de puros atos de
confraternização ou congraçamento. Dessa perspectiva, comunhão tem muito a ver
com comunicação, mas não se confunde com ela. Se a comunicação consiste em
solicitação de informação por parte de um interlocutor, seguida de seu
atendimento pelo outro, ou seja, se comunicação é uma troca de informação por
meio de palavras, a comunhão consiste em uma preparação do cenário para que
essa troca seja eficaz. Comunhão não é troca de informação propriamente dita,
mas a criação de uma predisposição nos indivíduos que estão juntos em
determinado espaço para que isso se dê. Pelo fato de estarem juntos
solidariamente, comungam de muitos interesses, entre eles uma abertura para a
troca de informação. Se não por outros motivos, pela simples predisposição em
si mesma.
De um modo geral, pessoas que se veem juntas
em determinado espaço fatalmente interagem entre si. A interação inicial, a que
precede qualquer outro tipo de interação é uma tentativa de entrar em comunhão
no sentido de “comunhão de ideias e de sentimentos”. Só depois desse primeiro
passo é que poderá haver trocas de palavras propriamente ditas, diálogos, mesmo
que sejam apenas para manter a união do grupo, ou seja, mesmo que sejam expressões
meramente fáticas. Isso vale para a comunicação prototípica. Veremos que as
altercações, brigas verbais também são algum tipo de "comunicação",
mas são casos excepcionais.
Vejamos
o caso de alguém que acaba de chegar a uma cidade pela primeira vez. Se precisar
interpelar um transeunte para perguntar onde fica determinada rua, não o dirá
de supetão: “Onde fica a rua Tiradentes?”. Pelo contrário, nos termos de
Jakobson, primeiro ele tentará abrir o canal para a comunicação, mediante algo
como “por favor!”. Ao virar-se para quem o interpelou, o transeunte
praticamente já entrou em comunhão com ele. Portanto, a pergunta “onde fica a
rua Tiradentes?” já poderá ser formulada. Normalmente haverá um atendimento a
essa solicitação. Quando o interpelado não sabe onde fica essa rua, procura por
alguém em volta que talvez possa atender o interpelante, numa atitude de boa
vontade, de predisposição para ajudar. Essa prdisposição não é nada mais do que
comunhão.
Quando
recuperamos o sentido religioso original da palavra, verificamos que a
existência de um código comum não é necessária para que haja comunhão. O mais
importante é o próprio compartilhamento, não importa de quê. Tanto que a
definição do Petit Robert diz exatamente que comunhão é "estar em
comunhão de ideias, de sentimentos”. Nesse sentido, comunhão é um conceito
ecológico mais amplo. Todos os seres animais tendem a ter atos de comunhão, e
não apenas as aves, como sugeriu Jakobson, para proteção, reprodução, lazer
etc. Veja-se o caso das bactérias. Talvez mesmo os vegetais interajam
comunialmente. Pode ser que até mesmo a força de coesão no caso da matéria
inorgânica seja uma espécie de comunhão no reino mineral. É isso que se pode
ver explicitamente exposto em Couto (2009: 34-38). Sem aprofundar este tema, minha
proposta é de que comunhão não pressupõe uma língua comum. Pelo contrário, é a
comunicação e, por extensão a língua, que pressupõem algum tipo de comunhão
prévia. Como disse Schaff (1968: 159) "o processo de comunicação só ocorre
no mundo animal quando envolve o processo de cooperação, processo de ação
social sui generis". Por "cooperação", entenda-se comunhão.
No
caso dos seres vivos, e os humanos não são exceção, se essa interação for de
hostilidade (simbiose desarmônica), poderá haver lutas, redundando até mesmo na
eliminação do outro, ou de todos. Nesse caso, o agrupamento heteróclito acaba
se desfazendo. Se a interação for de solidariedade (simbiose harmônica), os
seres poderão passar a constituir um todo relativamente homogêneo, uma
comunidade. No nível do orgânico, ocorre algo semelhante. Um exemplo seria a
fertilização do óvulo que dá lugar ao feto. No nível do inorgânico, temos a
força de atração e a de repulsão. Se prevalecer a segunda, as partículas (os
corpos) se repelirão; se prevalecer a primeira, poderão aderir umas às outras,
formando um novo corpo.
Alguns
poucos autores salientam a importância do espaço nesse contexto. Assim, quando
indivíduos, mesmo de culturas diferentes, se veem juntos em um mesmo espaço, ou
seja, entram em contato, por uma questão de sobrevivência acabam entrando em
comunhão, como a que se viu em Porto Seguro em 1500 entre portugueses e
ameríndios. A partir dessa comunhão, inevitavelmente surgirão tentativas
individuais de comunicação. Caso a convivência continue, essas tentativas
acabam levando à emergência de uma comunidade e, consequentemente, à emergência
de uma linguagem comum, como começou a ocorrer nos primeiros núcleos de
colonização na África, América, Ásia e Oceania. A situação comentada por
Samarin é o início de um desses processos.
Numa
situação de contato de povos e línguas diferentes (contato interétnico,
interlinguístico) é claramente a solidariedade (comunhão) que começa a preparar
o terreno para o surgimento de uma comunidade. Nos primeiros momentos do
encontro, tem-se apenas uma agregação cinética, como as pessoas no elevador,
que nada têm em comum, motivo pelo qual ficam ansiosas para chegar ao seu andar
e cair fora. Outro tipo seria a agregação tropista, como as pessoas debaixo de
uma marquise para se proteger da chuva. Em nenhum desses casos há comunhão. No
entanto, se a convivência no espaço perdurar, fatalmente surgirá algum tipo de
comunhão, pois estão compartilhando uma situação sem saída. O modo mais comum
de interação é a comunhão, ou seja, o estar satisfeito, ou conformado, com o
simples estar junto. Se há alguma coisa para comunicar, isso é muito bom e
bem-vindo. Se não houver, não importa. O que importa é a solidariedade, a
predisposição para a convivência e a comunicação. No caso da criança adquirindo
a língua de seu meio, isso se aplica integralmente.
Em
síntese, no reino do inorgânico, a comunhão consiste na copresença
espácio-temporal de partículas ou elementos, que se atrairão. Nesse caso, elas
se aderirão uma à outra, formando um todo complexo. A sedimentação que dá lugar
a rochas seria um exemplo. No reino do orgânico, ou biológico, a copresença
espácio-temporal pode provocar um contágio, que pode levar, entre outras
coisas, à formação de um novo ser, como na fusão de uma célula haploide
(espermatozoide) com a do sexo oposto (óvulo) durante a fecundação para formar
um zigoto. No reino do superorgânico, a copresença leva a uma solidariedade
(comunhão), inclusive por uma questão de sobrevivência, que é o primeiro passo
para o surgimento de uma comunidade e, consequentemente, de uma linguagem. A
última, por sua vez, faculta a comunicação propriamente dita, manifestada no
fluxo interlocucional, ou diálogo.
O
fato de a palavra “comunhão” etimologicamente iniciar-se pelo prefixo “con-”
não é casual. Muitas outras palavras iniciadas por ele indicam algum tipo de
comunhão, como confraternização, comemoração, congraçamento, cooperação e
outras. Isso porque a relação de junção indicada por ele pressupõe copresença
de dois seres em um mesmo espaço, contíguos um ao outro. A recíproca também é
verdadeira: sempre que dois seres (humanos, no caso) se veem juntos, interagem.
Se não é comunicando-se, o que pressuporia uma linguagem comum, pelo menos
comungando do mesmo estado de espírito a partir do qual a qualquer momento
podem ocorrer atos de interação comunicativa, como se vê nas regras
interacionais 1 e 2, expostas em Couto (2015a: 63-66). Deleuze (1976) já havia
chamado a atenção para esse fato.
Como
se pode ver no Vocabulaire technique et critique de la philosophie, de
André Lalande (Paris: PUF, 1956, p. 152), comunhão é “similitude de
sentimentos, de ideias, de crenças entre duas ou mais pessoas que têm
consciência dessa similitude”. Por isso, comunhão é também “interatração ou
agrupamento fundado sobre essa similitude”. Aí temos uma explicação para a
comunhão que houve entre portugueses e ameríndios, ou seja, o fato de ambos os
lados terem o dom da consciência. Deixando de lado a discussão filosófica e
psicológica sobre o assunto (como no materialismo dialético), basta lembrar que
a etimologia da palavra “consciência”, indica justamente saber (scientia)
com outros (con-). Assim, a despeito de não ter havido atos de
interação comunicativa, que pressupõem uma linguagem comum, em Porto Seguro,
houve cooperação, congraçamento, enfim, comunhão, porque cada lado tinha todo
um conhecimento do mundo, e sabia que o outro também deveria tê-lo. Portanto, o
que propiciou a eficácia de alguns dos atos de interação comunicativa foi, além
da copresença no espaço, que deu lugar a uma comunhão, a consciência de
que cada lado tinha ciência (conhecimento) do mundo e de que o outro
também a teria. Por isso, um lado compartilhava essa ciência (conhecimento), com
o outro. Em síntese, a sequência evolutiva é a seguinte: a agregação
tropista provoca uma interação entre os indivíduos; se essa interação
for competitiva, de rivalidade, o agregado se autoaniquilará; se for
cooperativa, terá lugar uma atitude de comunhão, que preparará o
contexto para a comunicação. Logo, agregação cinética/tropista >
interação > comunhão > comunicação.
Além
de simbiose, que é um conceito ecológico mencionado acima por William Samarin,
há outros conceitos da linguagem comum que lembram de perto a questão da
comunhão. Um deles é 'convívio' ou 'convivência', que o Aurélio define
como sendo “ato ou efeito de conviver; relações íntimas; familiaridade; trato
diário".
Vejamos a comunhão no contexto da ADE, ou seja, Análise do Discurso Ecossistêmica (ou Análise do Discurso Ecológica), proposta em Couto (2014) e desenvolvida em Couto, Couto & Borges (2015). Contrariamente às AD tradicionais, na análise dos textos-discursos a ADE não enfatiza ideologias e relações de poder, mas a defesa da vida e uma luta constante contra o sofrimento evitável. Isso vai na direção da comunhão, aí inclusa uma compaixão pelo sofrimento de outro ser, não apenas humano, levando a suas últimas consequências o princípio ecológico das relações harmônicas, não apenas intraespecíficas mas também interespecíficas: todos os seres vivos são incluídos; até os não vivos como o ar, as águas, a terra sobre a qual vivemos, o sol que contribui para a vida na face da terra, a lua que embeleza nossas noites etc. É também uma tentativa de neutralizar o sentimento de ódio. É isso que defende a ADE, mediante a postura da comunhão. Não se trata de pieguice nem de ignorância de que as ideologias existem. Trata-se, ao contrário, de uma atitude de compaixão pelo sofrimento do outro (humano e não humano) e de não partir do conflito, botando mais lenha na fogueira político-ideológica. Trata-se, enfim, de tentar apagar o fogo à la Gandhi.
Nesse sentido, defende-se o uso de uma linguagem que não ofenda o outro (humano e não humano), como detalhadamente discutido em Couto (2012). Não é pieguice, mas uma tentativa de procurar um equilíbrio com a força contrária da indiferença frente ao sofrimento do outro. Até mesmo de uma perspectiva antropocêntrica esses princípios devem ser respeitados pelos humanos, pois a vida humana depende deles. Defendê-los diretamente é defender a vida humana indiretamente.
Praticamente todos os regimes políticos que se instituíram revolucionariamente ruíram, mais cedo ou mais tarde, frequentemente também de modo abrupto. Em geral os que tiveram mais sucesso são os que foram surgindo evolucionariamente, para continuar usando a terminologia marxista. Enfim, como venho tentando mostrar desde Couto (1986), as “regras” que se instituem por cooperação têm mais chances de sobreviver do que as que se instauram por competição. Isso porque o primeiro procedimento leva a uma coordenação geral das vontades, não a uma subordinação da vontade da maioria à de um único indivíduo ou de um pequeno grupo dominante. A história tem mostrado que, contrariamente ao que propõe o marxismo, têm mais chances de sucesso os regimes que surgem seguindo uma evolução natural, paulatinamente, não os que emergem abruptamente, mediante uma revolução. Estes últimos tendem a desaparecer pelo mesmo processo. Tudo isso porque não levaram à comunhão entre os indivíduos que constituem a comunidade.
Vejamos a comunhão no contexto da ADE, ou seja, Análise do Discurso Ecossistêmica (ou Análise do Discurso Ecológica), proposta em Couto (2014) e desenvolvida em Couto, Couto & Borges (2015). Contrariamente às AD tradicionais, na análise dos textos-discursos a ADE não enfatiza ideologias e relações de poder, mas a defesa da vida e uma luta constante contra o sofrimento evitável. Isso vai na direção da comunhão, aí inclusa uma compaixão pelo sofrimento de outro ser, não apenas humano, levando a suas últimas consequências o princípio ecológico das relações harmônicas, não apenas intraespecíficas mas também interespecíficas: todos os seres vivos são incluídos; até os não vivos como o ar, as águas, a terra sobre a qual vivemos, o sol que contribui para a vida na face da terra, a lua que embeleza nossas noites etc. É também uma tentativa de neutralizar o sentimento de ódio. É isso que defende a ADE, mediante a postura da comunhão. Não se trata de pieguice nem de ignorância de que as ideologias existem. Trata-se, ao contrário, de uma atitude de compaixão pelo sofrimento do outro (humano e não humano) e de não partir do conflito, botando mais lenha na fogueira político-ideológica. Trata-se, enfim, de tentar apagar o fogo à la Gandhi.
Nesse sentido, defende-se o uso de uma linguagem que não ofenda o outro (humano e não humano), como detalhadamente discutido em Couto (2012). Não é pieguice, mas uma tentativa de procurar um equilíbrio com a força contrária da indiferença frente ao sofrimento do outro. Até mesmo de uma perspectiva antropocêntrica esses princípios devem ser respeitados pelos humanos, pois a vida humana depende deles. Defendê-los diretamente é defender a vida humana indiretamente.
Praticamente todos os regimes políticos que se instituíram revolucionariamente ruíram, mais cedo ou mais tarde, frequentemente também de modo abrupto. Em geral os que tiveram mais sucesso são os que foram surgindo evolucionariamente, para continuar usando a terminologia marxista. Enfim, como venho tentando mostrar desde Couto (1986), as “regras” que se instituem por cooperação têm mais chances de sobreviver do que as que se instauram por competição. Isso porque o primeiro procedimento leva a uma coordenação geral das vontades, não a uma subordinação da vontade da maioria à de um único indivíduo ou de um pequeno grupo dominante. A história tem mostrado que, contrariamente ao que propõe o marxismo, têm mais chances de sucesso os regimes que surgem seguindo uma evolução natural, paulatinamente, não os que emergem abruptamente, mediante uma revolução. Estes últimos tendem a desaparecer pelo mesmo processo. Tudo isso porque não levaram à comunhão entre os indivíduos que constituem a comunidade.
Descomunhão
A
tecnologia atual está afastando as pessoas dos estados de comunhão no sentido
que lhe foi atribuído acima. Acabamos de ver que ela é uma espécie de cimento
social que mantém a coesão entre as pessoas. Vimos que a convivência comunial
em determinado espaço é parte de nossa sociedade. Há comunhão no seio da
família, entre cônjuges, numa comunidade paroquial, em uma firma etc. Enfim, há
diversos níveis de comunhão.
Como
mostrei em Couto (2015b), há situações em que o de se esperar seria que as
pessoas ficassem em comunhão, mas o que se nota é justamente o seu contrário. É
o caso de uma família composta de pai, mãe e dois filhos adolescentes em uma
mesa de restaurante. Frequentemente eles ficam, todos, ligados no WhatsApp,
trocando mensagens com alguém que não está ali, praticamente ignorando-se uns
aos outros. Eles estão fisicamente juntos, às vezes com os ombros se tocando,
mas não se percebem mutuamente. A isso, chamei de descomunhão, que é um
estar junto fisicamente mas não mental nem socialmente. A descomunhão se dá nas
situações em que o de se esperar é que haja comunhão, mas, na verdade, o que se
tem é seu contrário. Daí o sufixo des-, que expressa a ideia de algo
contrário ao que seria de se esperar.
Há
quem ache que existe comunhão nessa situação. Para essas pessoas, tratar-se-ia
de um outro tipo de comunhão. As pessoas nessa situação estariam cientes da
presença dos demais e que, de vez em quando, se dirigem a eles. Além disso,
estariam em comunhão virtual com alguém não presente espacialmente, ou seja, no
mesmo T. No meu modo de entender, isso seria espichar por demais o conceito de
comunhão. Ele tem uma acepção muito precisa, oriunda do cristianismo e até da
Ecologia. Nesta última ela recebe o nome de interação harmônica, caso em que o
caso que chamei de descomunhão seria, de alguma forma, uma interação
desarmônica. O conceito está mais bem desenvolvido em Couto (2015b).
Observações
finais
Gostaria
de repetir que pode haver comunhão sem comunicação, mas não comunicação sem
comunhão, a não ser nos casos de altercação, de brigas etc. Mas, isso não é
comunicação prototípica, aquela que se dá entre dois interactantes face a face
e em que há o desejo, às vezes até um prazer em comunicar, obedecendo as regras
interacionais.
Contrariamente
à tese daqueles que acham que há comunhão entre os cinco membros de uma família
em torno de uma mesa que estão se comunicando com alguém fora dali via WhatsApp,
pode haver comunhão até em nível de multidões. Inclusive intercontinental. No
primeiro caso, podemos pensar nas pessoas que lotavam o estádio do Maracanã no
momento da morte do corredor brasileiro de fórmula 1 Airton Senna. Assim que o
fato foi anunciado pelos alto-falantes, houve um silêncio de um minuto em que
se podia ouvir uma mosca voando. Isso é comunhão. Todos estavam em uníssono, em
sintonia no sentimento de homenagem ao ídolo.
Vimos
que duas pessoas que encetam um diálogo entraram primeiro em comunhão. Essa é,
digamos assim, a comunhão mínima, que poderíamos chamar de comunhão
interacional, pois ela se dá devido à necessidade de entrar em atos de
interação comunicativa. Mas, podemos dizer também que uma comunidade de fala se
mantém coesa devido a um sentimento de comunhão, de que compartilham uma
linguagem, costumes, relações de parentesco, de amizade, de vizinhança etc.
Trata-se de comunhão como cimento social. Nesse sentido, podemos dizer que o
que mantém os membros da comunidade de língua coesos em torno de sua língua é
algo parecido. Os habitantes de Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo
Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste têm, pelo menos os que
determinam os destinos dos respectivos países/estados, um sentimento de
pertença à Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Trata-se de algo que
poderíamos chamar de comunhão sistêmica, pois, na verdade, o que os une
é justamente o sentimento de compartilhar o sistema da língua portuguesa.
Enfim, o conceito de comunhão é tão fundamental que perpasse a língua desde o
sistema até a célula da comunicação, ou seja, o ato de interação comunicativa,
passando pelas comunidades de fala de diversas dimensões.
Couto, Elza K. N. N. do. 2017. Dez anos de ecolinguística no Brasil: inovações e reinterpretações. In: Couto, Elza; Dourado, Zilda; Silva, Anderson & Avelar Filho, João (orgs.). Linguística ecossistêmica: 10 anos de ecolinguística no Brasil. Campinas: Pontes, p. 45-64.
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Ótimas reflexões, tanto do ponto de vista de retrospectiva histórica quanto atual, no âmbito da Ecolinguística Sistêmica. Há muito o que se pesquisar sobre o conceito de "comunhão"!
ResponderExcluirO que e lemguagem verbal
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