terça-feira, 15 de agosto de 2023

Frasilhas

 

FRASILHAS

 

Hildo Honório do Couto

Universidade de Brasília

 

A palavra ‘frasilha’ não se encontra nos dicionários de língua portuguesa nem nas gramáticas. Mas, é um conceito necessário para abrigar uma série de palavras que funcionam como uma frase, as palavras-frase. Frasilha foi usada em português pela primeira vez em Couto & Couto (2023, p. 39). Trata-se de uma tradução do termo phrasillon de Lucien Ternière, que o utilizou alternativamente a palavra-frase, mot-phrase em francês (TESNIÈRE, 1959, p. 94-95). Ele aplicou o termo às exclamações, inclusive as interjetivas, e outras categorias de palavras que ele considerou frases comprimidas, ou seja, palavras-frase.

Como se pode ver já no título de seu livro, o objetivo de Tesnière era o estudo da sintaxe que, grosso modo, é o estudo de combinações de palavras formando frases e de morfemas formando palavras. Ele não chegou a entrar em uma descrição fonológica propriamente dita. Ele salientou que as gramáticas tradicionais deixavam as interjeições de fora, por não conseguirem incluí-las em nenhuma das categorias de palavras que reconheciam, tais como substantivo, verbo, adjetivo, advérbio, conjunção e preposição. Para ele isso se deveu ao fato de as interjeições não constituírem uma categoria de palavras à parte. Elas seriam palavras-frases, ou seja, frasilhas. O primeiro exemplo que ele aduz é o equivalente francês de ai!, “que equivale a uma frase inteira”. Acrescenta que algumas dessas interjeições “podem até mesmo expressar estados de alma e de espírito mais matizados e tão complexos que dizem por si sós mais do que uma frase inteira”. Assim, uma expressão como e aí!, que não tem nada a ver com ai!,  é muito mais expressiva do que as frases inteiras equivalentes como (1) e (2). 

 

(1) E agora, o que vamos fazer? (como de uma situação complicada)

(2) Como você tem passado? (como cumprimento informal)

 

Parece que os falantes encurtaram a expressão justamente para dar mais vivacidade ao que querem dizer. E mais, economizando tempo, sem muitos rodeios, sem muito palavreado que não agregaria nada ao que pretendem dizer ao ouvinte.

Tesnière acrescenta que quase todas as frasilhas “são organismos anquilosados, expressões estereotipadas”, “são palavras inanalisáveis”, motivo pelo qual “do ponto de vista da sintaxe estrutural, elas não apresentam nenhum interesse”. Ainda em sua opinião, “quanto mais primitiva for uma língua, mais chance ela tem de ser constituída de palavras-frase ainda inarticuladas sintaticamente”. É o caso de alguns “símios superiores” que podem ter até “18 articulações que têm uma significação diferente, mas que não passam de palavras-frase sem uma verdadeira organização gramatical”. Porém, essas expressões  “podem ser analisadas semanticamente”. A frasilha jesus!, por exemplo, significa algo como ‘por que aconteceu isso?’ ou ‘o que é isso!?’.

O autor diz que as frasilhas podem não ter sintaxe interna, mas são semanticamente bastante expressivas. “Por terem uma carga semântica, as palavras-frase provêm historicamente de palavras plenas anteriores: o aïe! francês vem do latim popular *adjuta; je! vem de Jesus”. “Às vezes elas descendem historicamente de pequenas frases ou, pelo menos, de elementos de frases ou de grupos de palavras: o francês oui! (sim) vem do francês antigo oil, que vem do latim hoc illum. “O francês non! (não) vem do latim *ne oinom ‘não um’ (TESNIÈRE, 1959, p. 95).

Isso pode acontecer até com algumas onomatopeias (p. 96). Aliás, Saussure já havia dito que expressões tidas como onomatopaicas em francês, como fouet (chicote) e glas (dobre de sinos), provêm de palavras comuns do latim: fouet vem de fagus (faia) e glas de classicum, que dispensa tradução. O contrário, onomatopeia se tornar palavra comum da língua, também pode ocorrer. É o caso do pipio latino, que se transformou na palavra pigeon (pombo) (SAUSSURE, 1973, p. 82-83). Isso ocorre às carradas nas onomatopeias inglesas e/ou nas palavras icônicas, de aparência onomatopaica, como se pode ver nos diversos ensaios dedicados às onomatopeias em revistas em quadrinho e nos mangás. O texto de Roger Wescott “Alolinguística: explorando as periferias da linguagem” contém um apanhado geral dessa questão na língua inglesa (WESCOTT, 1976).

Passemos ao estudo de alguns casos de frases que se comprimiram e de expressões originalmente interjetivas, onomatopaicas e outras já comprimidas e seu equivalente em frase inteira. Um primeiro exemplo que vem à tona é a expressão eis x, que está para algo como aqui está (o que você pediu, ou qualquer outra coisa). Trata-se de uma frasilha que requer um complemento. Tesnière comentou o equivalente francês que, no caso, são duas formas: voici e voilà, algo como eis aqui e eis lá. Eis provém da forma latina ecce, muito conhecida na expressão bíblica Ecce homo (aqui está o homem – Jesus). A forma francesa provém de formas plenas que combinam alguma forma do verbo voir (ver) com ici, num caso,  e com (lá/aí), no outro. É uma palavra-frase parcial, pelo fato de requerer complemento. Em francês existem ainda formas como celui-ci (este aqui) e celui-là (aquele lá/aí).

Uma outra frasilha de natureza verbal é cadê? A forma original plena seria algo como O que é de x?, no sentido de onde está x? Como eis, cadê exige um complemento, como, por exemplo, em Cadê o João?, que significa Onde está o João? Essa forma plena evoluiu para quede?, que, por sua vez, evoluiu para quedê?, que evoluiu para cadê? Por dissimilação do e inicial do e tônico final (dissimilação ocorre em outros casos, como aribu por urubu, em algumas regiões rurais, levando às três vogais prototípicas a-i-u). A forma mais comum é cadê?, mas quede? e quedê? ainda podem ser ouvidas, em alguns contextos. A forma quede? pode ter surgido nas regiões em que a preposição “de” é pronunciada como [di/dži] e cadê onde ela é [de]. É claro que se trata de uma hipótese. 

A exclamação/interjeçião tadinho! (e o feminino tadinha!) é também uma palavra-frase, uma frase comprimida, ou seja, uma frasilha. A origem primeira é coitado!, que deu origem ao diminutivo coitadinho. Como a sílaba inicial coi– é átona, caiu, como acontece em muitos outros casos como acabou que pode ocorrer como cabô. Entendi pode virar tendi, por brincadeira. E assim por diante. É bom lembrar que coitado não tem nada a ver com coito (ato sexual), mas com coita, que na literatura trovadoresca medieval significava sofrimento, no caso, de amor. Como se vê no Aurélio, coitado é particípio passado do verbo coitar, que tem a variante coutar, que, por sua vez, tem a ver com o substantivo couto (origem do meu sobrenome), de significado “terra coutada, privilegiada; Lugar onde se podiam asilar os criminosos, onde não entrava a justiça do rei”. Significava também “terra onde era proibida a caça”, mas apenas pelo público em geral. Ainda segundo o Aurélio, o particípio coitado significa “desgraçado, mísero, pobre, infeliz”. Enfim, coitado resume tudo isso, exprimindo algo que em uma frase plena seria algo como “Eu tenho muita pena dele/dela!”

-Olá! = Forma de saudação/cumprimento que significa algo como Como vai você?, Como tem passado?, Bom dia/tarde/noite? Tem havido diversas sugestões de etimologia. Algumas relacionam a expressão ao hola espanhol, ao allô francês, que estaria ligado ao hello inglês, o heil alemão (como em heil Hitler!) e até ao húngaro hallom (eu estou escutando). Parece o alô que dizemos ao atender o telefone. São todas etimologias não muito confiáveis.

-Alá! = forma comprimida de olha lá!, por síncope do [a] medial (olh’lá), fusão de lh e l, dando olá, a partir do qual houve assimilação do o átono inicial ao á tônico final. Parece ainda não estar dicionarizada. O apresentador de televisão Faustão a usa frequentemente.

Certa feita eu estava com minha filha de cerca de dois a três anos no zoológico. Na nossa frente o que se via parecia ser apenas um gramado e algumas pedras. De repente, uma das “pedras” se moveu e ela exclamou: au au! Para ela tudo que mexia era bicho e todo bicho era au au. Por isso ela exclamou porque ficou admirada ao perceber que o que pensava ser algo inerte e imóvel na verdade era um bicho, ou seja, um au au em sua linguagem. Com essa frasilha o que ela quis dizer era: Aquilo é um bicho, não uma pedra!

Como se pode ver na teoria dos atos de fala (AUSTIN 1997; SEARLE, 1972), a maioria das frases deixa algo não expresso, com o que apresenta algum grau de compressão. Vejamos as frases de (3) a (6).

 

(3) Você trouxe o livro?

(4) Eu trouxe o livro

(5) Traga o livro amanhã!

(6) Eu os declaro marido e mulher

 

Em (3) está faltando a contextualização, ou deixização, incluída em (3)(a). Em (4) está faltando o conteúdo de informação, incluído em (4)(a). Em (5) está faltando a ordem, como se vê em (5)(a). Quanto à declaração feita por um padre ou um pastor vista em (6), ela não pressupõe nada. Trata-se de uma situação em que o dizer é o fazer. O ato de dizer é o ato de realizar.

 

(3) (a)[Eu pergunto a você se] você trouxe o livro

(4) (a)[Eu informo a você que] eu trouxe o livro

(5) (a)[Eu ordeno a você que]traga o livro amanhã

 

A resposta a (4) implica mais dois elementos considerados frasilhas por Tesnière. Com efeito, a resposta poderia ter sido como se vê em (7)(a) ou (7)(b), em caso de ser afirmativa, e (8)(a) ou (8)(b) para resposta negativa. A alternativa (7 )(a) é comprimida, logo, uma palavra-frase (Sim). Se a resposta for negativa, (8)(a) é também forma comprimida, palavra-frase (Não). 

 

(7) (a)Sim,  7(b)Sim, eu trouxe o livro

(8) (a)Não; 8(b)Não, eu não trouxe o livro

 

Se a pergunta for formulada em forma negativa e a resposta for afirmativa, o francês (9) e o alemão (10) dispõem de uma terceira alternativa de resposta.

 

(9) Est-ce que tu ne vas pas au cinéma? (Você não vai ao cinema?)

(9) (a)Si, je vais au cinéma (eu vou ao cinema)

(10) Gehst du nicht ins Kino (você não vai ao cinema?)

(10) (a)Doch, ich gehe ins Kino (sim, eu vou ao cinema)

 

Tesnière chama as frasilhas sim, não, talvez, além do si e o doch alemão de frasilhas anafóricas, pelo fato de reportarem a uma pergunta anterior. Nos termos da psicolinguista romena Tatiana Slama-Cazacu, tratar-se-ia de exemplos de sintaxe dialogada, que leva a uma sintaxe mista (SLAMA-CAZACU, 1982).

 

Uma terceira alternativa de resposta a (7)(a)-(b) em português seria a que se vê em (11), mediante a palavra talvez, que não é sim nem não.

 

(11) Talvez eu vá ao cinema

 

No espírito da proposta de Lucien Tesnière, alguns advérbios de lugar, tempo e modo também seriam frases comprimidas, palavras-frase, sobretudo de olharmos para a etimologia e o significado. Segundo os etimologistas, a palavra aqui vem do latim vulgar accu hic, com significado semelhante: accu, por seu turno, viria de ecce + hunc, acusativo singular de hic. Agora vem de hac hora (esta hora). Hoje tem por etimologia o latim hodie que, por sua vez vem de hoc die (este dia) (ARNAULD; LANCELOT, 1803, p. 329). Poderíamos acrescentar como cuja origem é quo modo, que vem vem de ad hic. Ou seja, todas essas frasilhas de alguma forma vêm de expressões mais complexas (frases).

Como mostrou Tesnière e no espírito da Grammaire générale et raisonnée de Arnauld e Lancelot, independentemente dessas etimologias polêmicas, por trás ou subjacente a todas essas frasilhas temos algo complexo:

-aqui = em este lugar

- = em esse lugar

-agora = em esta hora

-hoje = em este dia

-assim = de este modo, de esta maneira

-como = de este modo/de que modo?

No âmbito das preposições também se pode falar em palavras-frase.Cunha (1970, p. 377-378), por exemplo, apresenta 17 preposições simples essenciais e 14 acidentais. Levando em conta apenas as essenciais – as acidentais são palavras de outras categorias que eventualmente exercem a função de preposição –,  ele alinha ainda 44 preposições complexas, chamadas de locuções prepositivas. Ora, locução é outro nome para frase, no sentido de combinação de palavras. Portanto, pelo menos as seguintes preposições simples podem ser consideradas palavras-frase ou frasilhas pelo fato de seu significado poder ser expresso também por locução prepositiva (frase):

-sobre = em cima de

-em = dentro de

-sob = debaixo de/embaixo de

-após = depois de/em posição posterior a (do latim ad post)

Até alguns advérbios podem ser vistos como frasilhas, a começar dos espaciais, temporais e modais recém-vistos. Poderíamos acrescentar vários outros, mas, no momento basta acrescentar dois exemplos:

-antes = em posição anterior a

-dentro = em a posição interior de (do latim de intro)

Para terminar, gostaria de salientar que praticamente todas as exclamações interjetivas (locuções interjetivas, interjeições vocabulares, interjeições prototípicas) são frases comprimidas, ou seja, palavras-frase, frasilhas, como se pode ver em Couto & Couto (2023, p. 40). Esse ensaio discute não apenas as exclamações e interjeições, mas também as onomatopeias e outros modos de expressão que as gramáticas tradicionais ignoram, por os considerar periféricos. Como vimos acima, muitas onomatopeias podem ser usadas exclamativamente, como o au au de minha filha. Tudo isso justifica a proposta do termo ‘frasilha’ e uma investigação dos exemplos que ilustram a categoria. 

 

Referências

ARNAULD; LANCELOT. Grammaire générale et raisonnée de Port Royal. Paris: Imprimerie de Munier, 1803.

AUSTIN, J. L. How to do things with words. Cambridge: Harvard University Press, 2ª ed.,

15ª impressão, 1997.

COUTO, Hildo Honório do; COUTO, Elza Kioko N. N. do. Por uma gramática ecossistêmica do português brasileiro. ECO-REBEL v. 9, n. 3, p. 3-50.

https://periodicos.unb.br/index.php/erbel/

CUNHA, Celso. Gramática do português contemporâneo. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1970.

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 5ed., 1973.

SEARLE, John R. What is a speech act? In: Giglioli, P. Paolo (org.): Language and social

Context. Harmondsworth: Penguin Books, p. 36-54, 1972.

SLAMA-CAZACU, Tatiana. Structura dialogului: Despre “sintaxe dialogată I. Studii și cercetări lingvistice XXXIII, n. 4, p. 301-321, 1982

TESNIÈRE, Lucien. Éléments de syntaxe structurale. Paris: Klincksieck, 1959.

WESCOTT, Roger. Allolinguistics: Exploring the peripheries of speech. The Second  LACUS Forum. Columbia, SC.: Hornbeam Press, p. 497-513, 1976.

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